“A FERA DO MAR” – Um olhar inconscientemente paradoxal
Como seriam as narrativas históricas se versões consagradas e equivocadas fossem problematizadas? Esta é a premissa da animação A FERA DO MAR, disponível na Netflix, para um período similar às Grandes Navegações no início da Idade Moderna. Em tese, a obra teria como horizonte vital a ressignificação das relações entre a humanidade e as criaturas marinhas. Na prática, a forma como se busca um olhar contra-hegemônico não se efetiva integralmente por conta de brechas paradoxais abertas inconscientemente.
A bordo da embarcação Inevitável, a tripulação comandada pelo Capitão Crow desbrava os mares caçando feras que ameaçam comunidades litorâneas e o império daquela nação. No grupo de caçadores, Jacob Holland é o mais famoso entre todos e futuro comandante do navio. Na jornada para eliminar a Bravata Vermelha, os caminhos de Jacob se cruzam com os da menina Maisie Brumble. Ao longo da expedição, os dois se tornam amigos e repensam a violência das criaturas caçadas.
Inicialmente, o diretor Chris Williams apresenta a versão hegemônica e oficial que remete às navegações por longas distâncias feitas pelos europeus a partir do século XV. Naquele período, narrativas míticas dominaram o imaginário coletivo com lendas sobre monstros enormes, abismos profundos e imagens do inferno na Terra. Em função da ameaça representada por feras que devastaram cidades e aterrorizaram os navegadores, os caçadores foram contratados pelos reis para garantir segurança e vingar os colegas mortos. No orfanato onde Maisie mora, ela lê para as outras crianças um livro que estabeleceu a mitologia em torno dos caçadores através de histórias de seus feitos grandiosos. Além disso, Crow, Jacob e os demais reforçam a atmosfera mitológica em si mesmos a partir de um heroico código de honra baseado na busca por uma morte tão incrível quanto suas vidas e no compromisso de sempre se ajudarem em consideração à memória dos mortos e ao destino das gerações futuras.
O estabelecimento de um universo diegético calcado em mitos também se fundamenta nas sequências de ação. Chris Williams desenvolve uma narrativa que imediatamente evoca a franquia “Piratas do Caribe” e que, gradualmente, aproxima-se do recorte cultural de “Moana” e “Como treinar o seu dragão” com o passar do tempo. Os momentos de confronto entre a tripulação e as feras são filmados de modo a evidenciar a grandiosidade dos ambientes e das ações dos personagens, como fica evidente na sequência em que a primeira criatura é abatida após um longo e arriscado trabalho dos caçadores que os colocou entre a vida e a morte. Essas cenas criam uma dimensão mítica ao se relacionarem com as histórias idealizadas contadas sobre os caçadores (mais exemplos para a história oficial?) e ao promoverem uma descarga de adrenalina nos espectadores através de set pieces em renovação constante e à procura de dinâmicas visuais diversas.
Com a entrada de Maisie no conflito central, a animação se abre progressivamente para outras perspectivas. Apesar de não ser tematizada diretamente pelo roteiro, a diversidade se manifesta a partir do protagonismo de uma menina negra e da importância de mulheres na tripulação do Inevitável, sobretudo Sarah Sharpe que ocupa um posto de comando. Por mais que possa parecer uma interpretação extrapolada, a presença de personagens tão variados pode guiar a percepção fílmica para outras leituras que prezam pela diversidade. Pode não ser algo tão original em se tratando da abordagem escolhida, mas se debate quem seria o verdadeiro monstro. O design de algumas “feras” torna a bondade delas mais visível do que uma eventual monstruosidade, inclusive a própria Bravata Vermelha que deveria parecer ameaçadora, mas não gera esse efeito por completo. Já os humanos poderiam ser vistos como monstruosos sob certo ângulo, em especial os tripulantes que usam um tapa olho ou tem uma perna metálica e uma feiticeira apresentada por suas partes do corpo exageradamente distorcidas.
Logo, Maisie é a personagem capaz de passar por transformações internas e estimular mudanças em quem está ao seu redor, principalmente Jacob. Ela é a primeira a reavaliar as relações entre humanos e criaturas, percebendo que as explicações sobre a origem da guerra entre eles e a violência dos animais não seriam corretas. Por conta da modificação de sua postura, a narrativa oferece um olhar distinto para os “monstros”, ainda que dentro de um subtexto previsível, nas cenas em que a menina e o caçador se aventuram por áreas desconhecidas. Ao longo do percurso, os dois se deparam com uma questão provocativa: as histórias que formaram nosso povo são uma mentira? Simbolicamente, é importante para Maisie desafiar o livro que carrega, o guardião de memórias artificiais de seu povoado. A reorientação da dramaturgia pode ser facilmente antecipada, mas o maior problema é dispensar as possibilidades que existiam para se falar sobre a diversidade entre as criaturas marinhas. Afinal, a sequência que se passa em uma ilha habitada apenas pelos animais fantásticos se resume simplesmente a um confronto físico.
Da mesma maneira que não quebra totalmente os estereótipos dados às criaturas, o filme também deixa de trabalhar a monstruosidade em torno dos humanos. Inicialmente, a questão foi apresentada com sutileza com planos detalhe de aspectos corporais não tradicionais. Em seguida, o desejo de Capitão Crow de exterminar a Bravata Vermelha custe o que custar esvazia a humanidade do personagem, levando-o a firmar uma aliança perigosa com uma feiticeira. No entanto, o arco do comandante desconsidera aspectos cruciais para desenvolvê-lo e abordar sua contribuição na discussão temática da animação. Se os caçadores seriam heróis virtuosos que protegem seus conterrâneos, o desejo de vingança implacável não seria uma evidência da impossibilidade de idealizá-los? Se o acordo feito para matar a “fera” cobraria um preço terrível, os desdobramentos não deveriam ser mostradas ao invés de parecer um aspecto perdido na trama? Ao fim e ao cabo, essas ausências colocam um limite considerável na proposta de releitura da história defendida pelos realizadores.
A chegada do clímax de “A fera do mar” retoma alguns pontos já construídos anteriormente. A sequência de ação é grandiosa em termos de escala e de consequências em jogo. A força da diversidade na representação dos personagens interfere nos acontecimentos do último confronto. E uma versão contra-hegemônica contesta as explicações consagradas ao apontar a violência e o egoísmo humano como produtores de uma guerra sem propósito. Por sinal, este último elemento assume uma posição absolutamente contundente de crítica à opulência do império e a ambição desenfreada de enriquecimento. O que poderiam ser questionamentos pertinentes contra algumas figuras de poder e o caráter destrutivo da humanidade se revela, contraditoriamente, um discurso incoerente. Isso porque propor uma releitura da história de homens e “monstros” tentando preservar a imagem dos caçadores como heróis é fazer um trabalho incompleto e paradoxal, algo que se reforça no contraste entre as intenções dramáticas da narrativa e a canção durante os créditos finais.
Um resultado de todos os filmes que já viu.