A FAVORITA – Uma direção maior que o roteiro [42 MICSP]
Vencedor do Grande Prêmio do Júri no Festival de Veneza 2018, A FAVORITA é um filme verdadeiramente extravagante, a despeito de seu roteiro nada extraordinário. Baseado em uma história real, o filme é o retrato da disputa entre Lady Marlborough, uma nobre, e Abigail, uma criada, pelo posto de favorita da Rainha Anne, da Inglaterra.
No triângulo central estão três atrizes gabaritadas, duas delas premiadas com Oscar. Emma Stone interpreta Abigail, uma personagem bastante dúbia e que constantemente sugere ser lobo em pele de cordeiro. Por ser uma criada, sua caracterização não é (ao menos no início) glamourizada – ao revés, ela sai literalmente da lama para chegar ao castelo da Rainha. A segunda oscarizada é Rachel Weisz, responsável por dar vida a uma mulher de personalidade forte, Lady Marlborough (Sarah, para os íntimos). Weisz e Stone incorporam duas personagens que, cada uma à sua maneira, demonstram ter o vigor necessário para buscar a satisfação dos próprios interesses. Em uma das poucas sutilezas do filme, quando elas estão em situações opostas, seus figurinos adotam cores também opostas.
A Rainha Anne é vivida por Olivia Colman (irreconhecível, não se pode negar), cujo trabalho agradou os italianos (que a premiaram), porém destoa do resto do elenco em razão do overacting. Não que seja um filme de atuações minimalistas, mas seu exagero em alguns momentos é capaz de tirar o espectador da diegese. Por outro lado, a personalidade da Rainha é deveras interessante: sua saúde frágil é reflexo da sua personalidade igualmente frágil, o que facilita a manipulação de terceiros. Seus ataques raivosos e depressivos (como quando ela grita para os músicos encerrarem suas atividades e saírem do jardim) só fazem sentido ao considerar tratar-se de uma mulher psicologicamente abalada por traumas pretéritos. Estes, por sua vez, embora não sejam centrais na trama, dão uma backstory robusta à personagem, além de ensejarem uma simbologia às avessas no que se refere aos seus animais de estimação (pois coelhos costumam simbolizar sorte).
Trata-se ainda do primeiro filme dirigido por Yorgos Lanthimos cujo roteiro não foi escrito por ele, tampouco por seu parceiro de trabalho Efthimis Filippou (mas é a segunda parceria do cineasta com Rachel Weisz, após o maravilhoso “O lagosta”, de 2015). O texto de Deborah Dean Davis e Tony McNamara está longe de ser ruim, mas não tem a sagacidade dos scripts de Lanthimos. Dotado de subtextos altamente complexos – do sacrifício humano em prol da nação (no aspecto existencial, no afetivo e no financeiro) ao significado do amor (quem ama deve ser sincero ao extremo ou usar palavras que agradem?) -, o roteiro é provinciano demais para um diretor extraordinário como Lanthimos. Similar ao plot do clássico “A malvada”, o humor negro (como a fala de Abigail sobre cavalheirismo) e bizarro (a interação animalesca entre a criada e um nobre) é a maior marca do roteiro, que, porém, tem um desfecho terrível.
Para compensar a ordinariedade narrativa, Lanthimos deixa marcas pesadas da sua direção. Os planos geralmente não são estáticos, com muito uso de travellings e panorâmicas, os enquadramentos são quase sempre centralizados (o que poucos se atrevem a fazer, como Kubrick e Wes Anderson) e o ângulo de filmagem é majoritariamente em contraplongée, sugerindo a grandiosidade do longa. Como se não bastasse, o diretor grego usa lentes grandes angulares quase o filme inteiro, o que nunca é recomendável para filmar cenários fechados, pois distorce a imagem (além da estranheza causada). Nem sempre a milimetragem baixa é percebida, todavia há momentos em que a distorção é tão flagrante que o quadro se torna desengonçado (como o plano em que a Rainha e Abigail estão em um corredor e aparece um tapete na horizontal). Não há motivos estéticos para essa opção, já que ela vai na contramão do uso de qualquer lente grande angular. Portanto, Lanthimos o fez para provocar o estranhamento do espectador.
Em outros aspectos técnicos, entretanto, a película é elegantíssima. O design de produção é deslumbrante no retrato da época, dos figurinos à maquiagem, dos penteados (incluindo perucas nos homens) aos adereços cenográficos. O quarto da Rainha, por exemplo, chega quase no limite da poluição visual, tamanha a quantidade de elementos imagéticos (quadros, tapetes, castiçais, coelhos etc.) – todos, porém, coerentes com a proposta. Aliás, se há vantagem na lente grande angular, é mostrar toda a estética do cenário.
A montagem erra em uma desnecessária fusão entre três planos no final, mas é de qualidade (o raccord entre a queda de um artista com sobrepeso e Sarah é genial!). A trilha musical, como não poderia deixar de ser, investe em músicas eruditas, privilegiando instrumentos de cordas e de teclas (salvo uma de melodia mais atual, na última cena), merecendo destaque uma composição de apenas duas notas que se repetem incessantemente, gerando uma sensação incômoda.
Yorgos Lanthimos não é um gênio incompreendido, mas um diretor capaz de insights brilhantes e que peca pelo exagero. No primeiro caso, o uso de iluminação por velas, além de verossímil, é fascinante, por exemplo, na cena em que Lady Marlborough alcança o ápice da sua tristeza, parecendo mergulhada na escuridão, já que nada ao seu redor pode ser visto. No segundo caso, a insistência em lentes grande angulares é escancaradamente desnecessária. Quanto a “A favorita”, é um ótimo filme de um diretor que merecia um roteiro mais arrojado.
*Filme assistido durante a cobertura da 42ª edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.