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“A CURA” – Aquilo que escoa pelo vazio

O cinema permite uma concretude que não condiz com a natureza. Permite abordar questões abstratas através de iconografias palpáveis, que intermedeiam diversos dilmeas. Em alguns casos, esse uso é positivo. Em outros, se torna um redutor de complexidades. No caso de A CURA, esse caminho tateia os dois extremos com maestria.

Kenichi Takabe, detetive de longa data, começa a investigar uma série de misteriosos assassinatos. Apesar da conexão e padrões entre os casos, uma grande diferença dificulta o processo: cada morte parece ter sido cometida por uma figura diferente. Tudo muda quando Kenichi passa a suspeitar de alguém capaz de influenciar outras pessoas a cometerem os tais crimes. 

Dirigido por Kiyoshi Kurosawa, é interessante quanto o filme consegue materializar a partir do vácuo. Na maioria de suas decisões, opta por isolar o espectador do gráfico. O princípio dos assassinatos é sugerido pela interação entre o sujeito influenciador e seus executores. Geralmente acontecem em espaços controlados e pouco preenchidos. É uma relação bastante direta entre o assassino indireto, os signos e os instintos daqueles que convence a matar.

(© Filmicca / Divulgação)

Em cenas futuras, o estrago já está feito. O que é deixado à imaginação de futuro, agora está determinado. As mortes já aconteceram e existe pouco que as justifique. Nessa relação elíptica, surge uma necessidade incontornável de solucionar essas incógnitas. De que maneira são executadas? O que inspira tais acontecimentos? O que leva alguém a perpetuar tal feito?

São questões que pouco se encerram na objetividade de Kurosawa. Pelo contrário, o cineasta encontra meios de investir em sua perpetuação, enganando quem o acompanha pela clareza das situações propostas. É como se o mal estivesse simplesmente brotando da tela, da forma mais natural possível, impossível de se esclarecer.

O perpetuador à distância é simplesmente um homem com bagagem atribulada. Seus ceifadores e suas vítimas não são selecionados senão pelo acaso. Não existe um plano elaborado de vingança, um mosaico de motivações geradas pelo passado. Essa pulsão doentia se espalha de forma orgânica, atormentando o Kenichi de Kôki Yakusho. O ator se coloca com um cinismo que se dissolve em espécie de temor religioso, fortalecido à medida em que avança em suas pesquisas.

É interessante como a direção opera a confusão entre a personagem e seu antagonista, e lê a sintómatica de um mal estar social na banalização dessa maldade. É diferente da denúncia objetiva da corrupção policial, da violência enquanto uma faca de dois gumes, ou de análises de outros tipos de hipocrisia. É o caso de se investigar a alma dessa personagem, e esvaziá-la na mesma proporção em que acredita compreender quem persegue.

Vale retornar à sequência de abertura. A trilha sonora pacífica, e que jamais será revisitada, acompanha a caminhada de um homem até a sua casa. As composições remetem à normalidade, encapsulando a rotina de um trabalhador cansado. É quando explode o plano de um cano de água sendo extraído, embaixo de um viaduto. A forma como essa imagem salta aos olhos é mais agressiva que a situação que a sucede, quando o mesmo homem usa o encanamento para espancar uma companheiro em um quarto de hotel.

Os arquétipos da maldade, que nos ensinaram a identificar ao longo da história, se dissolvem em “A cura“. São menos violentos que as eventuais escolhas linguísticas de seu narrador, que brinca com uma certa falta de sensiblização diante de ideias reproduzidas à exaustão. Isso quando o diretor não apela justamente para a a ausência desses estímulos, nos forçando a emergir como parte da história, conectando pontos A a pontos B.

Não que o exercício realmente nos coloque à par da situação. Temos a ilusão de assim estarmos fazendo, tão iludidos quanto o detetive Takabe. Aquele princípio quase religioso surge justamente da desconfiança em relação ao esgotamento das representações mais básicas propostas pelo diretor. Como se aquelas figuras, aquelas imagens, não fossem o suficiente para justificar a sinfonia de execuções em torno da qual o filme se desenrola.

Na interrupção da vida, surge o ímpeto de se reverter o ordenamento natural do tempo, a passagem que transforma tudo e todos. A passagem que deteriora aqueles que já nasceram maus, que infecta os que chegaram bons. E é na fragilidade dessas tentativas que o filme encontro o seu verdadeiro assombro.