“A CALMA DEPOIS DA TEMPESTADE” – A emulsão de rastros compartilhados
* Filme assistido na plataforma da FILMICCA.
Existe uma certa instintividade em manusear uma câmera. Perseguidos pelos limites da existência, é comum ambicionar a captação de fragmentos do tempo, que imortalizem evidências dos caminhos que já percorremos. É como se essa busca transcendesse os limites do físico, gravadas em sensores digitais ou superfícies de celuloide. Atestando a história da sua realizadora, esses disparadores se manifestam com bastante força no documentário A CALMA DEPOIS DA TEMPESTADE.
Dedicada a produzir pequenos projetos cinematográficos, Mercedes Gaviria reflete sobre as influências deixadas por seu pai, o também cineasta Victor Gaviria. Ela revela filmagens do período em que trabalhou em um dos projetos do pai, interpolando depoimentos e vestígios de um passado fundamental para as imagens que busca até hoje.
Nesse sentido, não é difícil perceber a intimidade pela qual o filme se esculpe. Apesar do ordenamento pela narração em off de…, existe a construção de uma lógica regida pelo fluxo de consciência. É quase como se os fragmentos estivessem ali não estruturados por um pensamento racional, trazendo em sua montagem um aditivo ao dilema da constituição dessa identidade imagética.
Isso relativiza a linguagem habitual dos documentários, que comumente apostam na concretude de suas entrevistas e no olhar menos performático da câmera. Na medida em que Mercedes brinca com os primeiros filmes do pai, entretanto, fica clara a sua intenção de misturar as personagens fictícias e as reais como um reconhecimento da suspensão de suas próprias perspectivas.
Tem se aí um uso de imagens de arquivos bastante interessante, que prioriza esse sentido subjetivo e até metalinguístico para além dos significados mais imediatos dos materiais de origem.
Essa escolha aponta ainda para a tônica social do discurso a respeito da classificação de nacionalidades. As raízes colombianas germinam na miscelânea proposta pelo filme para revelar a importância histórica da preservação imagética, se expandido para fora do microcosmos formado pelo imaginário de um pai e uma filha.
É chamativo, por exemplo, como os filmes individualmente produzidos por eles traçam essa relação, conforme demonstrado pelas imagens de textura antiga, símbolos de marcas deixadas pelo avanço do tempo. Mercedes se recorda de uma obra em que Victor dirigiu um grupo de não atores, incluindo, entre eles, algumas crianças. Ela relembra a confusão de sentimentos com relação às “filhas postiças” que viu o pai dirigindo em set, bem como a dificuldade de transformar a própria personalidade em outra graças às necessidades projetadas pelo cineasta.
Isso evidencia experiências individuais que são transferidas para o campo da realização coletiva do cinema, conforme a diretora argumenta ao longo do filme. Na esfera social, desdobra uma lógica de investigação das próprias memórias que diz muito sobre as configurações da sua classe imediata, estabelecendo assim comentários críticos que se dão como consequência e não como objetivo primário que poderia levar a uma simplificação de complexas realidades culturais.
Como um todo, “A calma depois da tempestade” revela uma honestidade muito forte em seu estilo mais direto. O uso do rico material de arquivo costura a construção de uma identidade dupla, pouco preocupada com uma resolução senão com esse mergulhar na fluidez de memórias e impressões compartilhadas. A obra revela assim a importância da realização imagética como vestígio da emulsão de culturas e instintos universais.