“UM DIA, UM GATO” – Uma quase fantasia socialista
* Filme assistido na plataforma da FILMICCA (clique aqui para acessar a página).
“Vou contar uma história com mais verdade do que fantasia”. Esta frase é dita pelo imigrante grego Oliva na abertura de UM DIA, UM GATO. Considerando a origem do filme, a antiga Tchecoslováquia em 1963, a afirmativa poderia ser encarada como uma referência ao realismo socialista. Entre as décadas de 1930 e 1950, o estilo artístico aprovado pelo socialismo da URSS deveria transmitir mensagens revolucionárias próprias do regime e ser acessível ao povo através de uma linguagem simples e direta. Porém, esta impressão não se mantém quando o público percebe a ironia do personagem tentar negar o tom fantástico de seu relato estando dentro de um relógio e a própria trama se desenvolve. A partir daí, a narrativa abraça a fábula e critica tanto a política quanto a cultura socialista sob o comando da URSS.
Oliva é o contador de histórias de uma pacata cidade na Tchecoslováquia. Em certo dia, ele conta para o professor Robert e para seus estudantes sobre a época em que conheceu uma antiga paixão que possuía um gato com dons especiais. O animal sempre ficava de óculos escuros e, quando este era retirado, tinha a capacidade de colorir as pessoas ao redor de acordo com seus sentimentos e personalidades. O cotidiano do pequeno vilarejo é afetado no dia em que um grupo circense chega ao local, formado por um mágico idoso, a mulher por quem Oliva foi apaixonado e o gato de óculos escuros.
Não leva muito tempo para que a frase inicial seja definitivamente ressignificada. Ainda na sequência de abertura, Oliva observa por uma luneta o movimento dos moradores pela rua principal e comenta ironicamente alguns acontecimentos (o guarda de trânsito apenas útil quando ninguém o obedece e o homem aparentemente doente porque foi trabalhar). Assim, torna-se possível supor que a primeira fala também seria irônica. Consequentemente, a narrativa criada pelo diretor Vojtech Jasný demonstra rapidamente não ser explícita nem realista. Após a abertura, a câmera estabelece o centro dramático em torno de uma escola comandada por seu diretor e tendo como principal professor Robert, levando os dois adultos a entrarem em conflito constante. Nesse ambiente, o filme faz críticas sutis ao bloco socialista em termos políticos e culturais, tanto por ter sido produzido na antiga Tchecoslováquia (atual República Tcheca e Eslováquia) durante a Guerra Fria na década de 1960 quanto pelo vocativo camarada proferido entre os personagens.
Se Robert discorda do diretor quanto à prática da taxidermia, o superior o repreende por desrespeito profissional. Se um estudante tenta ser honesto como o professor incentiva que seja, fica frustrado por não poder falar abertamente que não gosta do pai. Quando um funcionário do colégio recebe a ordem de correr por uma sala com uma gaivota empalada como se ela estivesse voando, o diretor comenta que assim é criada a ilusão de o bicho estar vivo. Quando Oliva conta sua história para as crianças estimulando a imaginação, o diretor questiona Robert dizendo que a imaginação seria inferior por não ser científica. E quando ocorre a discussão entre os dois, o professor contesta o superior com o argumento de que apenas a verdade do outro seria válida. Implicitamente, esses momentos são construídos de forma a criticar o centralismo exercido pela Rússia nas repúblicas socialistas soviéticas, a falta de liberdade dos países satélites na URSS, a imposição de um modelo específico de socialismo pelos russos, o rigor disciplinar das hierarquias e da burocracia, uma visão mecanicista de cultura e uma concepção artística voltada para a representação direta do real.
Com a chegada do mágico, de Diana e do gato à cidade, a dinâmica da narrativa se transforma. Primeiramente, o ilusionista e sua equipe se apresentam na praça central como um inocente show de manipulação de objetos e peças de roupa para entretenimento geral. Em seguida, os visitantes encenam críticas ao diretor e aos seus funcionários na chave da falsa superioridade moral e da submissão passiva aos donos do poder. É o primeiro passo para gerar incômodo e apreensão entre as figuras de autoridade e as instituições, exemplificadas pelo diretor da escola e pelos funcionários públicos. Mas, acima de tudo, é o momento em que o óculos escuro é retirado do gato que desperta as reações mais intensas da população, já que muitos temem ser coloridos de amarelo (infidelidade), cinza (criminalidade) e roxo (falsidade, demagogia e imoralidade), enquanto alguns desfrutam do fato de serem coloridos de vermelho (paixão). Então, uma cisão incontornável se instala: os recém-chegados derrubam as falsas aparências de uma comunidade perfeita e insistem que outros lugares também precisam ser visitados, já os poderosos do vilarejo se escondem e demonstram preocupação com a presença do animal ali.
Embora os efeitos visuais chamem atenção em virtude dos limites tecnológicos da época e da evolução desse departamento ao longo dos anos, outros aspectos estéticos têm um lugar de destaque no princípio dramático da obra. E isso não significa desmerecer a restauração digital da produção, que tornou possível sua exibição na atualidade nem fechar os olhos para a impressão pontual de que os efeitos parecem hoje sobrepostos à imagem filmada sem tanta integração visual. Na realidade, significa identificar que Vojtech Jasný dispensa o realismo socialista, cria uma fábula com toques fantásticos e estiliza a linguagem fílmica. Portanto, as críticas políticas são acompanhadas de uma concepção artística desafiadora do status quo no mundo socialista. A construção estética não se baseia em efeitos de assimilação simples e imediata, já que a maior parte das sequências de coloração são filmadas sem diálogos e com uma mise-en-scène expressiva a partir das interações entre os personagens e da trilha sonora. Além disso, o encadeamento dessas cenas prioriza a montagem rítmica, tão comum no cinema hollywoodiano clássico, em detrimento da montagem intelectual sistematizada por Sergei Eisenstein e associada ao cinema soviético.
As características do realismo socialista continuam sendo desconstruídas à medida que a trama se desenvolve com o conflito em torno dos impactos do dom fantástico do gato na cidade. O diretor do colégio mobiliza funcionários e outros indivíduos para caçarem o animal, aprisioná-lo e até matá-lo com o intuito de manter os privilégios sociais e políticos de alguns habitantes; enquanto, Robert e seus alunos desejam encontrar o bicho para protegê-lo de investidas violentas e revelar as verdades do local. As leituras temáticas, sensoriais e históricas não são fruto de uma mensagem construída frontalmente com estímulos explícitos, mas a partir de indícios integrados à estética pensada pelo cineasta: a recorrência da cor vermelha como símbolo de paixão para a relação entre Robert e Diana (as roupas da mulher ou um guarda-chuva carregada pelo homem), a trilha sonora evocativa de uma parada militar interrompida bruscamente quando os planos do diretor são frustrados e a força simbólica das crianças (o futuro) na luta contra a excessiva hierarquização de sistemas ideológicos.
É particularmente interessante observar que, mesmo tendo personagens individualizados (Robert, o diretor, o mágico, Oliva, Diana…), o clímax e outras cenas chave são movidos por personagens coletivos (as crianças, a população em geral…). Não é coincidência que essas coletividades tenham um papel importante na conclusão dos conflitos dramáticos, uma vez que a própria história das revoluções socialistas e da ideologia anticapitalista seja baseada na união de grupos excluídos e na atuação política conjunta das massas. É assim que a mobilização das crianças contribui para a conquista de novos parâmetros para a cidade, finalmente conhecendo qual(is) core(s) aparecem no diretor e decifrando as contradições da sociedade. Da mesma maneira, relembrar que a Primavera de Praga, um movimento político de protesto feito na Tchecoslováquia contra o centralismo da Rússia, aconteceria cinco anos após “Um dia, um gato” também faz o filme ganhar outras possibilidades de leitura. No campo das artes, a insatisfação já aparecia e alimentava o que viria a ser mais tarde uma manifestação política. Uma insatisfação que se apresentava como uma fábula quase infantil e uma ironia quase digna do nome fantasia socialista.
Um resultado de todos os filmes que já viu.