“SUMMER OF SOUL (OU…QUANDO A REVOLUÇÃO NÃO PODE SER TELEVISIONADA)” – A História diante de nossos olhos
Qualquer pessoa já pode ter ouvido ou se envolvido em debates sobre o sentido da arte para nossas vidas. A discussão sempre se empobrece quando a busca é por alguma função específica para as produções artísticas, como se fosse possível defini-la pragmaticamente. A questão se complexifica ao destacar que essa suposta “função” não é única e pode se desdobrar para o entretenimento, uma forma de expressão do mundo, um conjunto de experiências sensoriais, uma reflexão crítica sobre a realidade e um registro histórico. E, no caso, de SUMMER OF SOUL (OU…QUANDO A REVOLUÇÃO NÃO PODE SER TELEVISIONADA), todos os efeitos podem estar integrados em um filme de importância histórica sobre uma dimensão não hegemônica dos EUA em 1969.
Naquele ano, foi realizado o Festival Cultural do Harlem no Mount Morris Park para celebrar a história, a cultura e a moda negra. Apesar da magnitude cultural do evento, foi subestimado historicamente e suas filmagens foram esquecidas em um porão. Cinquenta anos depois, o documentário recupera essas imagens e apresenta shows nunca antes vistos de Stevie Wonder, Nina Simone, Sly & The Family Stone, B. B. King e muitos outros artistas, intercalados com entrevistas com alguns indivíduos que estiveram no local. Assim, a música e a cultura afro-americana promovem o orgulho da comunidade negra em um contexto instável de Guerra Fria e luta por direitos civis.
O diretor Questlove demonstra desde o princípio que o evento está intimidade ligado ao momento histórico dos EUA, sendo, portanto, necessário, compreendê-lo para sentir a força das canções e das performances dos artistas. Então, a montagem de Joshua L. Pearson cumpre o papel de interligar as duas esferas: as filmagens do show de Stevie Wonder são intercaladas com arquivos de época da década de 1960, sobretudo acontecimentos violentos em uma conjuntura de assassinatos de Martin Luther King, Malcolm X, do presidente John F. Kennedy e do senador Robert F. Kennedy, e de descontentamento social com a Guerra do Vietnã. As transições criadas na ilha de edição começam a indicar que o Festival do Harlem pode ser uma espécie de resposta contra o cenário hostil para a população negra, ou seja, um conjunto de atitudes políticas de afirmação da comunidade. Ao mesmo tempo, a energia de Stevie Wonder em cima do palco é valorizada pelas próprias filmagens da época e pelo ritmo dado pelos cortes do documentário.
Entretanto, a política não se manifesta apenas nos fatos cânones da narrativa histórica tradicional dos EUA. As experiências e lembranças individuais daqueles que foram ao evento também adquirem uma concepção politizada, relacionada ao fato de que as vivências cotidianas podem dar sentido às identidades pessoais e ao senso de comunidade dos moradores do Harlem. Novamente é preciso combinar recursos para dar o peso merecido aos depoimentos das pessoas envolvidas na realização do evento ou da plateia reunida em frente ao palco, dessa vez através da narração em voice over que se soma ao fluxo das imagens. Por exemplo, assistentes da organização relembram o esforço feito pelo músico Tony Lawrence para organizar o festival e torná-lo confiável para os músicos comparecerem, além de contarem sobre o papel do prefeito John Lindsay como autoridade que tinha um diálogo significativo com os moradores locais; e espectadores recordam como era estar ali era um acontecimento marcante, como Dorinda Drake e Barbara Bland-Acosta que mentiram para as mães para assistir aos shows e Musa Jackson que ainda fica admirado até hoje com a reunião de tantas pessoas diferentes no parque.
Além de dar conta de múltiplas perspectivas individuais, a narrativa registra a cultura afro-americana como um conjunto de performances concretas que possuem uma dimensão política em sentido amplo. Considerando todos que se apresentaram (além dos já citados, The 5th Dimension, The Chambers Brothers, Hugh Masekela, Gladys Knight and the Pips, Mahalia Jackson e mais alguns), as apresentações têm uma mistura de gêneros musicais com suas próprias origens e características (soul, gospel, blues, jazz…) e questões sociais patentes no interior das bandas a partir de conflitos raciais do período – The 5th Dimension passa por críticas sobre ser um grupo que adota ritmos supostamente incompatíveis com a cultura negra e Sly & The Family Stone desperta reações inesperadas dos espectador por ser um grupo composto por mulheres e homens brancos. E no dueto formado por Mahalia Jackson e Mavis Staples, percebe-se a força da religião cristã como elemento de unificação de vidas, visões de mundo e coletividades, além de tomar uma direção política de confrontação com o racismo estrutural.
Há ainda outra possibilidade de sentir a influência de aspectos políticos na arte, dizendo respeito diretamente à forma como o festival se posiciona politicamente. Na sequência de imagens exibidas, é possível notar como os organizadores, os músicos e o público expressam suas opiniões políticas sobre temas e conflitos da década de 1960. Enquanto a televisão noticiava a missão espacial para levar o homem a Lua, os frequentadores do Festival do Harlem atribuíam maior importância às mazelas socioeconômicas do bairro (miséria, dependência de heroína…); enquanto imagens de arquivo mostravam as dificuldades dos primeiros estudantes pretos de estudarem na Universidade da Geórgia, muitas canções abordavam a necessidade de a população negra disputar o mundo apesar dos grandes obstáculos no caminho; e a aproximação entre afro-americanos e latinos a partir das semelhanças musicais leva os dois grandes grupos a sentirem que ocupam um lugar de marginalização social e podem se unir. Outro ponto essencial inclui a participação dos Panteras Negras como garantidores da segurança do evento, fazendo com que indivíduos ligados a uma organização revolucionária estivessem de algum modo relacionados ao evento.
Uma pergunta pode eventualmente ser colocada: seria necessário conhecer o pano de fundo histórico da Guerra Fria e dos movimentos por direitos civis para apreciar a obra? A princípio, não seria uma obrigação incontornável, já que a produção possui set pieces que podem ser apreciadas em si mesmas, como os registros da vibração da plateia que acompanha os shows com aplausos, danças e cantos e das apresentações musicais contagiantes de Stevie Wonder, Nina Simone, Sly & The Family Stone, The 5th Dimension e tantos outros. Porém, a experiência sensorial e dramática se amplia quando se considera que as filmagens do público destacam a diversidade de vestimentas e adereços, principalmente as túnicas de origem africana, bem como os cabelos afros. No que se referem aos artistas, é particularmente expressivo observar como algumas canções remetem à África, outras traduzem um sentimento de libertação espiritual (inclusive com interferências na textura das imagens), uma em especial transborda intensidade por ser a homenagem de Mahalia Jackson e Mavis Staples a Martin Luther King e como Stevie Wonder cada vez mais se politiza em suas aparições públicas.
Se a discussão do primeiro parágrafo for retomada, “Summer of soul (…ou quando a revolução não pode ser televisionada)” evidencia que a arte também pode ser uma maneira de expressão política. É assim que os entrevistados argumentam que o Festival do Harlem pode oferecer momentos diferentes da violência policial e da exclusão social para a comunidade negra, e que as músicas sintetizam a cultura e os projetos políticos dos afro-americanos. Nessa chave ainda, a apropriação da ideia de possessão espiritual das religiões africanas para as canções apresentadas denota uma sensação de catarse, de libertação espiritual que se ressignifica como um processo de libertação social e política. Nesse sentido, o documentário se coloca como um registro de libertação histórica por combater a invisibilização do Festival Cultural do Harlem de 1969, ofuscado pelo Festival de Woodstock, e dar valor às memórias individuais daqueles que participaram da História sendo escrita.
Um resultado de todos os filmes que já viu.