“MORTE NO NILO” – Mais Poirot
Talvez mais importante que o mistério de MORTE DO NILO seja a sua abordagem intimista do melhor detetive do mundo. Antes de ser um detetive, Hercule Poirot tem um passado que explica muitas características a seu respeito (do bigode à frieza). A prioridade do filme parece ser desnudar Poirot; em segundo lugar está o mistério. As demais personagens, porém, são marginalizadas em meio a uma estética primorosa.
Poirot está de férias no Cairo, quando encontra seu amigo Bouc, que o convida para uma festa de casamento. A lua de mel do casal acaba sendo em um barco, na presença dos convidados – inclusive o detetive. Com a morte de uma pessoa dentro da embarcação, acabam as férias de Poirot, que não vai descansar até resolver mais este mistério.
É perceptível o carinho com que Kenneth Branagh dirige o filme e interpreta Poirot. Na direção, o cineasta cria um prólogo excelente, preto e branco, que começa com um plano-sequência entre trincheiras e termina com a explicação do bigode do detetive. Honrando o título da obra, o Nilo surge quase como uma personagem quando a câmera é colocada submersa no rio para mostrar um esplendoroso Sol nascente que amarela tudo o que toca. Em sua última aparição, o Nilo se esvai através da fusão entre planos, como se fosse uma despedida.
Esteticamente, Branagh é impecável. Privilegiada por cenários maravilhosos (afinal, estão entre as Maravilhas do Mundo), a fotografia imprime tons épicos às Pirâmides de Gizé e ao Templo de Abu Simbel (este, filmado em contreplongée para elevar sua grandiosidade), destacando-se o pequeno Poirot (quando comparado a Quéops, Quéfren e Miquerinos) de terno e chapéu branco na paisagem arenosa. Os figurinos do longa são belíssimos, destacando-se o vestido prateado usado por Linnet (Gal Gadot, limitada como de costume) e os vestidos vermelhos de Jackie (Emma Mackey, provavelmente a melhor do elenco junto de Branagh), que associam essas figuras femininas ao luxo e revelam o abismo socioeconômico em relação a Louise (Rose Leslie, em participação pequena) e sua roupa de empregada.
Aspectos econômicos se tornam uma questão aos poucos, iniciando-se com um discurso exagerado da sra. Van Schuyler (Jennifer Saunders, sem destaque) que só se justifica no roteiro de Michael Green (baseado, como se sabe, no livro de Agatha Christie) porque o objetivo de tal discurso é disfarçar um segredo (ainda assim, isso poderia ser melhor trabalhado). O subtexto do dinheiro se torna mais instigante quando se entrelaça com o subtexto do amor, tal qual ocorre para personagens como Bouc (Tom Bateman, mediano), sua mãe (Annette Bening, cuja presença é sempre imponente), Rosalie (Letitia Wright, ótima) e Simon (Armie Hammer, decepcionante).
Dessa vez Poirot tem maior envolvimento no subtexto do amor, o que é abrilhantado pela atuação formidável de Branagh. Como não poderia deixar de ser em uma narrativa idealizada por Agatha Christie, a trama é cheia de reviravoltas e surpresas que, todavia, não conseguem ser magnéticas o suficiente pelo trato insuficiente na personalidade de algumas personagens. Certamente um elenco numeroso como o da produção dificulta que todos apareçam, porém a escassa participação de alguns torna óbvio o seu não envolvimento no mistério. Além de Louise, Bowers (Dawn French), Windlesham (Russell Brand) e Andrew (Ali Fazal) são alguns dos nomes usados apenas para anuviar a cabeça de Poirot, mas incapazes de ludibriar o espectador.
Ao se abrir para Poirot, Linnet revela que não confia em ninguém porque as pessoas só se aproximam dela pensando em seu dinheiro. O curto diálogo mostra como um maior desenvolvimento de uma personagem é capaz de enriquecer a obra. O mesmo ocorre, por exemplo, quando Rosalie provoca Linnet enquanto esta analisa contratos. O problema de “Morte no Nilo” é que falta fazer o mesmo com um número maior de personagens. Por outro lado, Poirot é melhor abordado em relação ao que é visto no filme anterior, “Assassinato no expresso do oriente”, agora encarando suas falhas (como o egocentrismo) e até mesmo refletindo sobre o rumo que deu à sua vida. Antes de ser um detetive, ele é uma personagem, cujas virtudes e defeitos devem ser abordadas – e o mesmo vale para as demais personagens.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.