“VOZES DO PASSADO” – Atmosferas de um passado fragmentado
As semelhanças com o australiano “Relíquia macabra” podem ser os primeiros aspectos a transparecer em VOZES DO PASSADO. Em ambos os títulos, personagens femininas de uma mesma família passam por conflitos que trazem à tona ressentimentos do passado e misturam drama e horror. Como diferenças entre eles, o filme neozelandês está mais interessado nos traumas da infância reprimidos por tanto tempo que, quando emergem das profundezas do inconsciente, perturbam e assustam. A grande questão fica por conta dos resultados de uma narrativa que desenvolve seus temas a partir de uma construção atmosférica.
Ellie é a personagem que precisa lidar com passagens sofridas de sua infância. Ela está grávida de um homem com que foi noiva e volta para a casa onde foi criada por seus pais com sua irmã para tentar escrever seu livro. No local, sua mãe Ivy está reformando a construção e empacotando os pertences para vender o imóvel após a morte dos avós de Ellie. O que seria, a princípio, uma chance de fazer mãe e filha se reaproximarem se torna um reencontro assustador com memórias sombrias de seu passado.
O presente narrativo é encenado inicialmente como um período composto por interações comuns. Ivy guarda os objetos da casa em caixas, cuida do marido Jack doente e organiza os reparos arquitetônicos feitos por Gus, enquanto Elli espera ter tranquilidade para escrever seu livro sobre as origens da ciência moderna e, por vezes, se desentende com a mãe em relação aos cuidados para a gravidez. A situação começa a ser realmente desestabilizada quando a protagonista passa a ter visões de uma menina em diversos cômodos, ora como pequenos flashes passageiros ora como presenças fantasmagóricas mais duradouras. Tais momentos são construídos de modos variados, como uma fala vinda ao longe, a passagem veloz de um vulto, a irrupção abrupta dessa figura infantil ou a aparição de um objeto antigo, mas os recursos sempre evocam convenções do horror sobrenatural e da estratégia do jump scare. Conforme o primeiro ato se desenrola, o diretor Jake Mahaffy demonstra que a construção estilística será mais atmosférica do que baseada em choques diretos e explícitos.
Na apresentação de uma atmosfera mundana com traços fantásticos, há uma lentidão que prejudica pontualmente o filme por correr o risco de afastar uma parte do público que já compreendeu a premissa da história e espera sua progressão. Essa base ganha um fôlego extra quando se define a figura espectral da menina chamada Cara, alguém que teve uma relação próxima com Ellie, e suas aparições são ressignificadas em função do sofrimento que a protagonista sente. Além disso, Jake Mahaffy trabalha metaforicamente a ideia de memórias armazenadas que se revelam gradualmente através de um cenário prestes ser desocupado e repleto de caixas. Por isso, Ellie se relaciona com o ambiente e com o conteúdo das caixas como se estivesse lidando com suas próprias lembranças traumáticas: olhar pelo buraco de fechadura da porta de um cômodo a transporta para um fato naquele lugar no passado, ver uma fita de vídeo faz ressurgir os momentos partilhados com Cara, encontrar os cacos de vidro de um vaso desperta uma tragédia passada e ouvir o ruído de uma caixa simboliza o medo de uma gravidez com desfecho inesperado.
Com a recorrência das visões, a protagonista se vê novamente vivenciando cenas de sua infância nem sempre da maneira como lembrava até então. Alguns trechos da sua vida se destacam mais do que outros, notadamente aqueles que foram ruins por alguma razão e a residência ajuda a desenterrar, como fragmentos do estranho trabalho do pai em seu escritório visto pelo buraco da fechadura, a difícil relação entre Ivy e Cara, a destruição de um vaso de vidro após as brigas com Cara e uma tragédia chocante no interior da casa. É interessante como as recordações específicas se relacionam diretamente com o momento atual da narrativa, estabelecendo transições entre o que está acontecendo ali no presente e o que aconteceu no passado a partir de um olhar, de um movimento ou de um som que conecta os dois tempos. Transitar entre os diferentes instantes da vida de Ellie contribui para compor um background maior sobre ela e os demais personagens, inclusive para entender as relações do presente, mas também reafirma questões e fatos repetitivamente até finalmente redirecionar o olhar do espectador para outras dinâmicas e possibilidades.
Quando novas peças são dispostas no tabuleiro, o cineasta cria um cenário que se remodela continuamente alterando os significados do acontecimento. Assim, a protagonista se depara com um conflito interior no qual percebe que as memórias podem ser enganosas, fabricadas, manipuladas e refeitas, o que a obriga a repensar as “certezas” que haviam dado alguma coerência para sua vida. Da mesma forma, o público percorre uma trajetória própria para assimilar quais são realmente aquelas personagens e quais dramas se abateram sobre a família, acumulando novas camadas dramáticas para Ivy e Ellie. A mãe parece, inicialmente, uma pessoa acolhedora e superprotetora, decidida a cuidar de Ellie e garantir uma gravidez saudável, porém um lado mais violento e egoísta começa a se manifestar quando a verdade sobre o passado se revela e um casamento problemático aparece. Já a filha parece ser uma pessoa resoluta na vida pessoal e profissional, firme na decisão de prosseguir seus estudos acadêmicos e manter sua gravidez da forma como desejar (a convicção de querer um processo todo natural sem nem saber o gênero da criança), porém mostra um lado vulnerável decorrente das fragilidades de traumas mal resolvidos e, principalmente, dos efeitos das dores reprimidas no passado para o presente.
À medida que o núcleo familiar se torna mais complexo, outro recurso expressivo utilizado pelo cineasta desenvolve impactos dramáticos mais evidentes. Na abertura, ilustrações de livros sobre a Idade Média abordam a influência do misticismo nos processos de conhecimento do corpo humano e de explicação do sentido do mundo, como aquelas que retratam o funcionamento do organismo humano, rituais religiosos e técnicas médicas rudimentares. Aparentemente, este recurso de roteiro estaria simplesmente ligado a um componente específico do arco de Ellie, especificamente sua formação acadêmica e seu trabalho na escrita de livro interessado em investigar as interferências do pensamento mágico do medievalismo na constituição da ciência moderna. Com o tempo, as informações armazenadas pela protagonista em um aparelho gravador são proferidas em uma narração em voice over que começa a entrelaçar seu estudo com suas experiências na casa, já que experimentações relacionadas ao ocultismo fizeram parte de sua infância e de sua família. Novamente, uma atmosfera sugestiva é criada para entrecruzar o mundano e o fantástico, insinuando os múltiplos significados possíveis dos laços em torno de Ellie, Ivy, Cara e Jack.
“Vozes do passado“, então, cria lentamente uma atmosfera de melancolia, sofrimento, tensão e horror a partir de quatro indivíduos que distorceram os sentidos mais usuais de uma família, inclusive através de práticas questionáveis e chocantes. Boa parte dessa atmosfera depende do uso expressivo da casa em reforma/em mudança, das convenções de histórias de terror de casas mal-assombradas e da dinâmica tempestuosa entre Ellie e Ivy criada pelas atuações de Julia Ormond e Emma Draper. Apesar de uma ambientação já sustentada nas sugestões, no ritmo lento e nas insinuações indiretas/fragmentadas, a narrativa resolve chegar ao clímax se distanciando dos elementos até então estabelecidos e abraçando uma montagem mais caótica, planos de imagens mais gráficas e frontais próximas de um body horror e trucagens de câmera mais explícitas e confusas. Justamente no momento de consolidar uma unidade estilística mais coesa, o filme tropeça em tentativas de gerar o choque pelo choque em detrimento de uma dramaturgia organizada. Por isso, a criação mais repetitiva do universo e a mudança repentina de tom enfraquecem parte de uma obra com ideias interessantes.
Um resultado de todos os filmes que já viu.