“NÃO OLHE PARA CIMA” – Não olhe tão fundo
Controvérsias do tempo presente. Estas vem sendo as matérias-primas para o cinema de Adam McKay. Foi assim com a crise imobiliária dos EUA em 2008 e sua predadora elite econômica para alimentar “A grande aposta“. Isso se repetiu com a patética elite política (republicana) dos EUA em tempos de ascensão de Donald Trump para dar origem a “Vice“. No fim de 2021, o cineasta fez uma parceria com a Netflix para lançar NÃO OLHE PARA CIMA, mistura de comédia e filme catástrofe que satiriza o atual negacionismo da ciência em um contexto pandêmico. Ou melhor, faz a sátira mais inócua de sua carreira recente.
Tudo tem início quando Randall Mindy e Kate Dibiasky fazem uma descoberta espantosa: os dois astrônomos identificam um cometa, orbitando dentro do sistema solar, que está em rota de colisão com a Terra. Com a ajuda do Dr. Oglethorpe, eles tentam avisar todas as autoridades possíveis à procura de um plano para evitar a destruição do planeta. Ao longo do percurso e apenas a 6 meses do impacto do cometa, os três cientistas lidam com a presidente Orlean, seu filho e chefe de gabinete Jason, os jornalistas Jack e Brie, o empresário Peter Isherwell e o restante da população em situações cômicas e desesperadoras. O que há em comum entre todos eles? Ninguém parece reconhecer a gravidade da ameaça.
Não há mistério algum nos significados de uma obra como essa no cenário atual. A colisão do cometa é o equivalente cinematográfico à pandemia do coronavírus e a indiferença das autoridades remete ao descaso de líderes como Donald Trump e Jair Bolsonaro ao combate da crise sanitária. Dessa vez, o interesse de Adam McKay é a série de práticas negacionistas que atacam, menosprezam, prejudicam, sucateiam e destroem a ciência ao não ouvir nem seguir o que dizem os especialistas. O problema é a intenção do diretor e roteirista não se efetivar em uma crítica sólida, mas em uma colagem de fatos e momentos mais dedicados a evocar no público o reconhecimento de situações reais. Logo, estão presentes os políticos que não agem em nome de seus próprios interesses, a mídia que neutraliza a seriedade das notícias, as interferências de empresários em decisões científicas, as teorias da conspiração criadas por grupos radicais e a polarização política em temas relativos à preservação da vida. Embora Adam McKay imprima energia e dinamismo à narrativa, a sátira se mostra vazia e inofensiva.
O filme é uma costura muito previsível de casos já observados na realidade contemporânea, que desperdiça as chances de ir mais a fundo nas críticas ao negacionismo científico e à radicalização política. As manobras eleitorais da presidente Orlean são sempre deixadas em uma posição periférica demais; o absurdo existente na maior atenção dada pela população a uma briga amorosa entre dois artistas ou a um suposto “escândalo” do candidato à Suprema Corte nunca é realçada; o desrespeito aos procedimentos básicos do conhecimento científico não passa de um detalhe coadjuvante; e a agressividade descontrolada de pessoas que contestam fatos e verdades sob o discurso raso de manipulação marxista surge e desaparece rapidamente. Nesse sentido, os personagens parecem mais símbolos de algo maior do que figuras bem construídas, como são os casos de Brie, criada por Cate Blanchett para simbolizar a imprensa ávida por “produzir conteúdo” a qualquer custo; de Orlean, construída apenas em função do encantamento gerado pela imagem de Meryl Streep; de Jason, concebido por Jonah Hill como uma caricatura ambulante sem um sentido tão concreto; e de Peter Isherwell, interpretado por Mark Rylance como uma excentricidade aleatória.
Acima de tudo, a narrativa nem sequer valoriza os representantes da ciência. À sua maneira, os três astrônomos não possuem um arco próprio de personagem ou uma construção que não os ridicularize por um humor questionável. Rob Morgan não tem à disposição material suficiente para fazer o Dr. Oglethorpe ser um personagem crível com características próprias, restando a ele ser somente um cientista dedicado ao seu trabalho. Jennifer Lawrence precisa apenas criar Kate como uma profissional indignada que regularmente extravasa sua fúria, algo que com frequência serve de piada para a produção. Já Leonardo DiCaprio, apesar de, em muitos momentos, ter um personagem ridicularizado por conta de suas doenças, pode criar um arco dramático um pouco mais reconhecível para Randall ao fazê-lo ser cooptado pelo governo estadunidense até perceber os absurdos que seria obrigado a aceitar e a reproduzir.
É bem verdade que Adam McKay está mais contido nas intervenções gráficas ou na remodelação das imagens, o que evita a sensação de que o diretor se sente superior ao público ao simplificar ideias complexas com um discurso cômico e palatável. Se em “A grande aposta” e em “Vice“, ele congelava a imagem, acelerava o ritmo dos planos e inseria símbolos gráficos ou discursivos, em seu novo projeto, o recurso aparece apenas quando se quer confirmar a existência de um setor de Defesa Planetária da NASA. Adaptando a narrativa ao estilo da trama, o maior mérito do diretor é decupar algumas cenas dentro da estética das redes sociais e dos smartphones. Como a diegese aborda a recepção popular ao cometa e a obsessão pela produção de conteúdo nas redes, a construção visual de certos momentos segue o layout de uma tela de celular, de uma câmera de celular ou de aplicativos de troca de mensagens/com seções de comentários dos usuários. Randall e Kate também são envolvidos pelo turbilhão midiático sendo, respectivamente, alçado aos seus quinze minutos de fama e alvo de memes por conta de sua revolta na TV.
Porém, o cineasta ainda trabalha a montagem de seus trabalhos como se fosse uma sacada extremamente inteligente. Se nas obras anteriores a montagem servia para dar um estofo pseudointelectual às suas críticas ou uma ironia nem sempre eficaz, neste filme, ela desgasta um recurso cômico inicialmente funcional: o choque cômico na passagem rápida de uma cena a outra, geralmente saindo de um instante explosivo para outro mais silencioso (como quando Randall e Kate criticam figuras poderosas a plenos pulmões e, em seguida, são levados pelo FBI). Com o tempo, o uso sistemático do recurso sem maiores variações se torna previsível e menos impactante. Além disso, Adam McKay insiste em inserir planos da natureza ou de outros países para sugerir o alcance global da ameaça ou forçar alguma mensagem edificante, mas cada trecho não passa de uma aleatoriedade que não se integra plenamente à trama e à unidade estilística.
Invariavelmente, a narrativa apresenta boas passagens enquanto o cometa se aproxima da Terra e o evento desencadeia situações absurdas entre aqueles que negam a verdade ou tentam lucrar com o perigo planetário. Apesar disso, o desfecho mais minimalista centrado em Randall, Kate e no Dr. Oglethorpe, enquanto o mundo acompanha com tensão a última operação de salvação, poderia ser um contraponto forte se a ideia de valorizar os momentos comuns já tivesse sido plantada e desenvolvida gradualmente. Tudo isso pode demonstrar que as virtudes de “Não olhe para cima” são pontuais, afinal a sátira se comporta menos como filme coeso e mais como colagem de acontecimentos próximos da realidade (sensação muito viva no monólogo exasperado de Randall em um programa ao vivo que mais parece um depoimento do próprio Leonardo DiCaprio). Consequentemente, a crítica um pouco mais contundente é dirigida ao ex-presidente Donald Trump. De resto, se olhar mais a fundo, a crítica é tão vaga e inofensiva que as quase duas horas e meia apenas tocam na superfície do problema.
Um resultado de todos os filmes que já viu.