“A ÚLTIMA NOITE” – Um tragicômico conto de natal apocalíptico
Tentar definir A ÚLTIMA NOITE dentro de um único estilo ou abordagem não é uma tarefa fácil. Comédia, drama e terror se mesclam. Conflitos familiares, intrigas entre amigos, período natalino e proximidade do fim do mundo se encontram. São tantos gêneros, subgêneros e elementos distintos que não parecem poder conviver juntos que a primeira impressão seria a de um filme caótico e sem unidade. Entretanto, confusão incoerente de valores estéticos não é o problema real que pode ser atribuído a ele, pois o que mais pode ser controverso é seu alcance no presente.
Em um casarão no interior, o casal Nell e Simon e seus três filhos Art, Thomas e Hardy formam uma família que recebe amigos para um banquete de Natal. A reunião é feita para aproveitar as últimas horas da vida humana na Terra, já que uma nuvem de gás venenoso se aproxima de onde estão. Ao que tudo indica, não há como escapar da morte iminente no dia seguinte à festividade, apenas evitar o sofrimento tomando uma pílula dada pelo governo. Mesmo neste contexto, pessoas dançam e cantam, desentendimentos surgem e dramas irrompem.
Inicialmente, a diretora Camille Griffin satiriza os filmes natalinos e suas confraternizações ao extrapolar os conflitos entre anfitriões e convidados. Cada personagem e sua relação com a festa determinam um tipo de humor nada convencional para a ocasião: Nell tenta garantir o amor e a união entre todos, apesar das brigas que ocorrem; Simon quer se divertir nessa noite, inclusive roubando um pudim de caramelo de uma loja próxima; os gêmeos Thomas e Hardy querem poder falar mal de Kitty e ficar bem longe dela; Art tenta ajudar nos preparativos embora seja o mais preocupado com o apocalipse; Kitty é a garota fútil e mimada interessada apenas em comer pudim de caramelo; Sandra e Tony formam um casal em que ela o controla e esconde uma paixão platônica por um velho amigo; Bella e Alex são namoradas que mal suportam o gosto musical e as amizades uma da outra; e James e Sophie são um casal em que ela não entende as razões de ele querer ir tanto à festa e odeia o fato de ser tratada como uma criança pelas demais pessoas.
Desde a abertura, o humor é ácido e trabalhado na dualidade entre vida e morte ou alegria do Natal e tristeza de uma tragédia. A apresentação dos anfitriões é permeada por situações inesperadas, sobretudo as crianças autorizadas para falar palavrões em seu último dia de vida e o acidente sofrido por Art enquanto cortava cenouras. Já a introdução dos convidados brinca com o uso de canções natalinas ou de ritmos dançantes em ocasiões que contrastam com a escolha da trilha sonora, especialmente quando a trama aponta a existência de desentendimentos prévios entre os personagens camuflados em um jogo de aparências. A cineasta também insere doses bem calculadas de uma comédia provocativa ao criar sequências absurdas envolvendo a morte iminente, tendo de um lado Art e Sophie que não entram na ilusão de um Natal feliz e amoroso dentro daquelas circunstâncias, enquanto os demais se preocupam com futilidades ou com uma diversão alienada. Nesse sentido, é curiosa a sequência na mesa de jantar, quando Kitty sugere que a morte de idosos deveria ser menos sentida e que a nuvem tóxica seria a criação dos russos.
O roteiro de Camille Griffin também expande o humor para outras possibilidades. A diretora e roteirista constrói momentos de comédia dramática que abrem espaço para personagens incapazes de lidar com uma tragédia em curso, a começar pelas referências conscientes ao mundo extrafílmico. Alguns diálogos abordam a destruição do meio ambiente, mencionando o ativismo ambiental de Greta Thunberg e de Leonardo DiCaprio e ironizando os riscos de um apocalipse zumbi como em “The walking dead“. Além das menções a nossa realidade histórica ou artística, a narrativa explora reações tragicômicas de alguns convidados diante da chegada da morte, especialmente os ressentimentos causados por amores não concretizados. A discussão na sala de estar coloca Sandra, Tony, James, Bella e Alex em uma espiral de conflitos incomuns sobre o que fizeram ou gostariam de ter feito no passado, algo ampliado pelas atuações de Annabelle Willis, Rufus Jones, Sope Dirisu, Lucy Punch e Kirby Howell-Baptis.
À medida que o tempo passa e a família principal sente os impactos do gás venenoso em pessoas conhecidas, o humor não pode mais ser mantido. Logo, o filme se transformam predominantemente em uma drama familiar mais carregado, centrado na indignação de Art em se ver obrigado a aceitar a morte sem soluções possíveis. Esta guinada dramática é representada pela performance de Roman Griffin Davis, já que seu personagem fica obcecado por ver vídeos de vítimas do gás e sofre com a certeza inabalável de seus pais de que é preciso tomar uma pílula para evitar uma morte dolorosa. Graças ao ator, Keira Knightley e Matthew Goode fazem seus trabalhos se desenvolverem ainda mais, como se vê no embate travado pelos três dentro de um carro. Esta é uma cena poderosa para lidar com a luta pela sobrevivência em condições absolutamente adversas.
Contrariando os pais, Art imagina possíveis cenários para todos sobreviverem ao gás sem recorrer à pílula sob o discurso de que os governantes e cientistas podem estar errados. A solidão de pensar assim (apenas levemente compartilhada por Sophie, que tem motivos próprios para se opor à pílula) faz com que o menino se depare com uma cena horrível na floresta próxima da residência. Após fugir das discussões com os pais, ele encontra vítimas vítimas da nuvem venenosa, uma visão que não somente o afeta como também os outros personagens e o filme como um todo. Camille Griffin encena esse momento dentro das convenções do terror, destacando a ambientação opressiva da escuridão mesclada à neblina, uma trilha sonora angustiante e misteriosa, a decupagem cuidadosa de Art chegando com medo ao lado de um carro abandonado e o enquadramento aterrorizante da cena no interior do veículo.
Nos minutos seguintes, o choque sofrido por Art na floresta gera consequências para todos. Cada um dos personagens, dentro de seus respectivos núcleos, deve tomar a decisão final em relação ao que fazer diante do fim do mundo em momentos derradeiros registrados pela cineasta com planos absolutamente intensos e dramáticos. Apesar de o núcleo de Nell, Simon, Art, Thomas e Hardy ainda ter piadas esporádicas que entram em conflito com o tom daquele desfecho, “A última noite” consegue transitar entre a comédia, o drama, o trágico e o terror dando unidade estética coerente para uma distopia natalina que poderia soar aleatória e instável. Na verdade, a controvérsia maior pode estar no plano final, no close que pode ser interpretado de modos diversos em um contexto atual de pandemia, crise sanitária e ambiental, negacionismo científico e governos ultraconservadores/reacionários/conservadores. Por um lado, pode ser apropriado por visões conspiracionistas, por outro, por leituras mais esperançosas para o destino da humanidade. Tudo isso porque qualquer obra de arte é aberta para múltiplos significados, recepções e usos.
Um resultado de todos os filmes que já viu.