“SELVAGEM” – A escola também é nossa!
“Todo bom filme é um documento de seu tempo”. A célebre frase do cineasta e crítico de cinema Éric Rohmer é cirúrgica para compreender como o cinema pode retratar o momento político, social e econômico de cada conjuntura histórica. Esta é uma ideia que pode se encaixar muito bem em SELVAGEM, uma produção brasileira que aborda os movimentos de ocupação de estudantes em escolas por vários estados do país a partir de 2015. Sob um ponto de vista complementar, filmes como este produzido pela DGT Filmes e pela Pietà Filmes podem se atualizar a cada transformação do contexto para seguir representando os dilemas de um Brasil em convulsão social.
O ano de 2015 foi marcado pelo anúncio de projetos federais de reestruturação da educação brasileira com o fechamento de colégios e a limitação de investimentos. Nesse cenário, Sofia e Ciro são adolescentes que estudam em uma escola pública que sofre com a falta de merenda e os riscos de encerramento de suas atividades. Quando os alunos decidem ocupar o colégio, os dois não se unem ao movimento imediatamente por estarem mais preocupados com outros assuntos. Porém, aos poucos, começam a perceber a importância das reivindicações enquanto a pressão da polícia pela saída do local se torna cada vez mais violenta.
Na sequência de abertura, o diretor Diego da Costa cria momentos estética e tematicamente poderosos capazes de impressionar pela ressonância dramática. Dos gritos mobilizadores dos jovens contra o Estado sob a tela escura, da aparição gradual das imagens com closes nos estudantes em um movimento de travelling, da tensão criada pela chegada dos policiais até a violência da invasão dos agentes repressivos, toda a construção estética evoca uma sensação de mistério quanto a uma tragédia iminente – o desenho sonoro, os cortes rápidos, a câmera trêmula e a geografia das locações realçam a truculência das autoridades que reprimem uma manifestação pacífica. Além disso, as primeiras cenas sintetizam problemas e lutas que vem desde 2015, quando o governo de Dilma Rousseff promovia o controle de investimentos na educação e iniciava debates sobre a reforma do Ensino Médio. Como resultado dessas ações, os estudantes ocuparam escolas no Paraná, em São Paulo, no Rio de Janeiro e em outros estados como demonstração de união, mobilização, resistência e agência histórica.
Este momento que abre o filme, na verdade, pertence a um ponto mais avançado da narrativa. Trazido para o início, cria efeitos dramáticos significativos e indica o desenvolvimento não linear da trama. A partir daí, o espectador é apresentando aos personagens com os quais irá se importar ao final, sobretudo os protagonistas Ciro e Sofia. É interessante fazer o casal ser o centro da história, pois eles não são os mais engajados na luta dos alunos e se preocupam mais com os poemas que escreve (Ciro) e com os estudos para o Enem (Sofia). A trajetória de ambos envolve a aproximação entre eles, o amadurecimento pessoal e o envolvimento na ocupação iniciada pelos colegas. Antes disso, as pautas sociais e políticas são periféricas para os dois, como fica simbolizado na cena em que a mãe de Ciro mostra a ele vídeos de ocupações em outras escolas e nas cenas em que Sofia troca a estação de rádio no carro do pai que falava sobre os índices de desemprego e nem escuta o programa de TV na sala que noticiava as ocupações.
Quando a mobilização estudantil começa naquele colégio, outros personagens recebem maior destaque e se dividem nas várias tarefas necessárias para a melhoria da instituição. Janaina, Pablo, Mirela, Josué e tantos outros se transformam ao participar das assembleias onde decidem o que fazer e como fazer os aperfeiçoamentos para que pudessem ter melhores condições de estudo. Assim, alguns problemas de uma educação precarizada são abordados: carência de alimentos para o refeitório, má conservação dos banheiros, falta de remuneração dos professores, possibilidade de fechamento de escolas estaduais e dificuldade de locomoção dos adolescentes para novos colégios. Como o Estado não atua e a direção escolar é omissa, os jovens tomam para si o colégio, afinal também são sujeitos fundamentais naquele ambiente. Então, eles cuidam das refeições, da limpeza, dos reparos das instalações, da arrumação das salas e até da criação de uma horta.
Consciente das acusações que os movimentos dessa natureza sofrem, Diego da Costa desenvolve a narrativa de modo a evidenciar a importância da lutas dos estudantes e seu compromisso com um espaço mais adequado para estudar. Em geral, a grande maioria se entrega de corpo e alma à melhoria da escola e não se comporta simplesmente como preguiçosos irresponsáveis que não querem ter aula. Tal comprometimento pode ser sentido na decupagem quase documental que atrai o espectador para dentro da ocupação para sentir como seriam as atividades diárias, inclusive os momentos de lazer e de apresentações artísticas com recitais de poemas e números musicais. Conforme o tempo passa, Ciro e Sofia percebem que podem ajudar, respectivamente, escrevendo textos que difundem o sentimento contestador do grupo e fazendo monitorias ou oficinas que manteriam o ensino e a aprendizagem.
Ainda que a obra retrate explicitamente os acontecimentos impulsionados a partir de 2015, outras camadas do roteiro invocam e dialogam com outros contextos históricos. Não são recentes a má preparação de um polícia que recorre a violência para sufocar manifestações pacíficas nem o discurso reproduzido pela imprensa e pelo pai de Sofia que considera as ocupações de escolas invasões comandadas por vândalos. E são cada vez mais contemporâneos a questão da representatividade negra e feminina em diversos espaços e contemplada pelo filme com um elenco repleto de homens e mulheres negras, como Julianna Gerais, Rincon Sapiência, Fran Santos, Kelson Succi, Érica Ribeiro, Vilma Melo e Lucélia Sérgio Conceição; do modelo neoliberal nas relações trabalhistas exemplificado pela cena em que a entrevista de emprego do pai de Sofia revela a precarização do trabalhador; e das opressões de gênero, mesmo em setores ditos progressistas, vistas nas atitudes de Pablo durante a ocupação.
A progressão do tempo em “Selvagens” pode ser ameaçadora em vários níveis: o risco da reintegração de posse forçada, a criminalização da mobilização estudantil, a repressão aos professores e aos alunos, a violência da polícia… Porém, o tempo pode ser benéfico para o casal protagonista, que constrói um lindo vínculo baseado no onírico e no poético, faz Ciro perceber que o mundo da poesia pode dizer muito sobre a experiência concreta do dia a dia e Sofia se conscientizar que existem lutas mais significativas do que prestar o vestibular. Como a última dinâmica entre os dois personagens expõe, pode ser importante “quebrar” tudo em sentido alegórico. Quebrar um teto de gastos que congela investimentos para a educação. Quebrar o Escola sem Partido. Quebrar o sucateamento de instituições educacionais. Quebrar a elitização da educação. E quebrar posturas negacionistas e reacionárias contrárias à ciência, À pesquisa e a uma educação pública e de qualidade.
Um resultado de todos os filmes que já viu.