“O TERCEIRO ASSASSINATO” – A investigação do ser humano
O subgênero do drama de tribunal pode, à primeira vista, significar um suspense construído em cima da investigação de algum crime e das incertezas quanto à inocência ou não do acusado. O TERCEIRO ASSASSINATO até tem consciência desse fato, contudo prefere investir nos conflitos humanos de seus personagens para construir uma narrativa voltada para a reflexão acerca dos limites da verdade. Quando o advogado de defesa Shigemori assume o caso de Misumi, acusado de roubo e assassinato do chefe da fábrica onde trabalhava, ele se depara com uma situação em que diferentes possibilidades se chocam e dificultam a resolução desse assassinato.
O enfoque pouco usual já se evidencia pelas escolhas estéticas adotadas pelo diretor Hirokazu Koreeda. Todas as sequências transcorrem num ritmo lento, moderado e de propósito definido: não existem grandes acontecimentos apoteóticos nem momentos de ação/suspense catárticos, existem relações humanas cuidadosamente retratadas em seus dilemas, contradições e lacunas; devido a isso, o cineasta opta por estender os planos, geralmente também estáticos, para permitir aos atores compor seus personagens nas sutilezas dos detalhes faciais e gestos comedidos e ao público penetrar em toda a complexidade humana apresentada. Hirokazu Koreeda não se furta a realizar moderadamente alguns movimentos de câmera visíveis quando a função dramática se apresenta: por exemplo, utiliza os reflexos dos vidros presentes nas salas de visitas aos presos para contrapor as imagens de advogado e cliente e, consequentemente, seus diferentes posicionamentos em relação ao assunto discutido.
A construção estilística do filme também é feita na composição da fotografia dos planos por Mikiya Takimoto. O uso de sombras é algo recorrente nos ambientes onde os personagens transitam, não os permitindo ter tanta liberdade ou paz de espírito; essa maneira de iluminar os cenários reforça a sensação de melancolia e frustração dominante nas vidas de pessoas fechadas em seus problemas interiores. Ainda que esse recurso seja muito empregado, não significa dizer que é o único quando se trata da fotografia: a sequência inicial, surpreendente por já trazer um assassinato brutal, combina as já citadas sombras com um facho de luz muito vermelho no rosto de determinado personagem (cor importante para simbolizar a violência ali praticada). Vale também apontar como a trilha sonora composta por Ludovico Einaudi, discreta e pontual em suas aparições, é evocativa para ilustrar os sentimentos predominantes em cada sequência importante do roteiro.
Uma abordagem assim construída atende às necessidades de uma história que não se preocupa com o suspense natural daquela investigação. Até acontecem reviravoltas e revelações que levam a narrativa para outras direções (e é preciso ter atenção para acompanhar essas mudanças), porém o interesse maior está na discussão sobre a possibilidade de alcançarmos a verdade em distintos âmbitos da vida em geral. A primeira camada do roteiro traz os questionamentos a respeito da dificuldade de compreender um caso de assassinato quando suas versões são múltiplas, os desdobramentos práticos e jurídicos são extremamente complexos e as consequências para as pessoas envolvidas afetam drasticamente suas existências. Aqui a verdade é apropriada, refeita, reinterpretada e ressignificada a todo instante, dependendo dos interesses em jogo; por isso, não é gratuito mostrar os diferentes pontos de vista envolvidos na morte do industrial, passando pelos advogados de defesa, pelo acusado e chegando aos familiares da vítima.
Não se limitando a permanecer nessa camada, a obra também contempla reflexões mais amplas e profundas sobre o significado social e psicológico da verdade. Conseguimos partir das análises de um caso policial e jurídico para atingirmos um debate sobre como as possíveis verdades da vida suscitam questões maiores e aflitivas para a natureza humana. Existe redenção, mesmo nas situações mais violentas? Os destinos dos indivíduos já são predeterminados e nada poderia alterá-los? Qual a capacidade do homem de decidir pela vida ou pela morte de seu semelhante? Como encontrar nosso lugar no mundo? Reparem que algumas dessas perguntas são representadas pela metáfora da morte de alguns pássaros que pertenciam a Misumi.
A dimensão humana desta história “policial” é ajudada pelo brilho especial na atuação de Kôji Yakusho. O ator constrói um personagem repleto de turbulências internas por conta de um forte sofrimento que carrega, associado a seu histórico de violência (descobrimos que, no passado, ele também já havia sido condenado por outro assassinato). As pequenas variações em seu semblante e os discretos movimentos de suas mãos indicam um trabalho corporal sob medida para completar uma personalidade que não é só desenvolvida pelas linhas de diálogo. Através das conversas que tem com seu advogado, Misuni é retratado como um homem em conflito permanente com suas próprias opiniões e afirmativas. Já Masaharu Fukuyama compõe um protagonista eficiente, nunca chamando atenção indevida para seu personagem, e mergulhado num arco dramático em que passa a se envolver com mais preocupação com seu cliente e com um senso de justiça mais apurado.
“O terceiro assassinato” refresca o subgênero drama de tribunal, justamente por não dar tanto destaque ao julgamento em si. Ele está lá, não pode ser ignorado porque é o ponto final para onde a narrativa caminha. Entretanto, o olhar da câmera recua um pouco para as pessoas e seus dilemas. Elementos que sempre serão os mais interessantes no cinema.
Um resultado de todos os filmes que já viu.