“78/52” – Destrinchando a genialidade
Aviso: a presente crítica trata de um filme relacionado ao clássico do mês (abril de 2018), “Psicose”, cuja crítica pode ser conferida clicando aqui.
Aviso (2): considerando que “78/52” tem enfoque em “Psicose”, o filme revela spoilers sobre o clássico, razão pela qual é recomendável, para entendê-lo melhor, assistir antes ao longa de 1960.
Afirmar que Hitchcock foi um gênio da sétima arte é dizer o óbvio, uma ideia praticamente consolidada entre os cinéfilos. O que é realmente importante é mostrar por que ele é considerado um gênio, isto é, fundamentar essa premissa. Esse é um dos objetivos de 78/52, documentário que parte de uma cena específica – a do chuveiro – para explicar a genialidade que nela reside.
Marion Crane, Norman Bates, Lila Crane, Sam Loomis, Caroline e Arbogast: todos aparecem no documentário dirigido por Alexandre O. Philippe. O cineasta faz uma reprodução simulada de “Psicose”, bastante fiel ao original (carro, moça, chuva, motel, casa, banheira etc.) – quiçá mais fidedigna que a versão de Gus Von Sant, de 1998 (que é equivocadamente citada em alguns momentos). O longa é praticamente inteiro em preto e branco, mantendo colorido apenas no que originalmente era colorido. Hitchcock filmou seu “Psicose” em preto e branco, segundo ele mesmo, porque as cores dariam maior verossimilhança ao sangue de Marion, tornando a cena repulsiva. Ainda assim, trata-se de um dos maiores momentos da história do cinema (mesmo considerando que era agressiva e violenta), que é de conhecimento até mesmo de crianças (conforme citado no filme de Philippe), que sequer sabem de onde vem a referência.
“78/52” aponta, diante de vários pontos de vista, o que há de brilhante na cena. Há uma perspectiva diacrônica, tanto intracinematográfica – já que a produção seguinte a “Intriga internacional” (um enorme sucesso) era até então uma incógnita – quanto externa ao cinema, mencionando o significado da mulher (que metaforicamente morreu nos anos 1950) e o contexto social dos anos 1960 (“não era um momento para Grace Kelly e Technicolor”). O filme também estuda “Psicose” a partir do som (em especial a histórica trilha sonora de Bernard Herrmann e o trabalho de sonoplastia com melões e carne) e da montagem (George Tomasini desorientou o espectador quase tanto quanto a vítima), dentre outros ângulos.
O livro no qual o longa se baseou tem a cena, porém de maneira bem menos impactante – e o que atraiu Hitchcock, segundo o que ele disse para François Truffaut em célebre entrevista, foi a morte na banheira, já que totalmente inesperada. Não por outra razão, o documentário menciona a reação do público (comparável à locomotiva dos irmãos Lumière), fazendo (e aí está seu diferencial) uma análise bastante pormenorizada da cena, elencando, por exemplo: o momento em que Norman apresenta o quarto para Marion, sem jamais falar a palavra “banheiro” (embora o mostre); a irritação de Norman quando Marion sugere internar sua mãe em uma instituição; a limpeza enquanto culpa sexual; o papel da mãe na cultura estadunidense; e o quadro ocultando o buraco na parede (“Susana e os anciãos”), que expressa o voyeurismo de Norman. Quebrando tabus (como a privada do banheiro), Hitchcock foi inspirado pelo expressionismo alemão e, inteligentemente, adotou uma estratégia bem peculiar para divulgar a sua película.
São mencionados os bastidores, contudo sem aproveitar os remanescentes da época – salvo o próprio Hitchcock, Marli Renfro, dublê de corpo de Janet Leigh, que também aparece, e Joe Stefano (todos eles, porém, com participação diminuta). São priorizados os mais famosos, alguns com vasto conhecimento em cinema, como Guillermo del Toro e Danny Elfman, outros, apenas experientes, como Jamie Lee Curtis e Elijah Wood (o que o credibiliza a estar lá é um mistério). Um problema significativo na película é que seu roteiro é fragmentado, sem homogeneidade ou coerência. Ou seja, não tem uma concatenação lógica das ideias, parecendo uma conversa informal em associação livre. Trata-se de um defeito metodológico que abala o documentário.
Entretanto, a observação detalhada do objeto de estudo, algumas vezes através dos storyboards, outras através de exame dos frames, tornam o filme profundo, usando cenas de “Psicose”, cenas de outros filmes (principalmente os cronologicamente próximos) e até mesmo produções inspiradas na cena do banheiro (o que surpreendentemente inclui a versão Lego, uma paródia com o Pernalonga, “Os Simpsons” e a série “Scream Queens”, aparecendo Lee Curtis, filha de Janet Leigh), revelando o seu legado. Mais que uma ode a Hitchcock, “78/52” reflete sobre uma (icônica) cena específica de um filme singular do “mestre do suspense”. A conclusão não podia ser outra.
Em tempo: “Na sombra do mestre: o legado de Hitchcock“, documentário presente nos extras do blu-ray de “Psicose“, é mais horizontal, porém mais profundo e com a participação maior de quem estava no projeto original. Vale ser visto.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.