“A CAMAREIRA” – Despersonalização capitalista
* Filme assistido na plataforma da Supo Mungam Films (clique aqui para acessar a página da Supo Mungam Plus).
Fade-out. De início, apenas escuridão. Fade-in. Com o tempo, imagens graduais. Aos poucos, uma mulher e um quarto de hotel tomam forma. Uma camareira está encostada em uma parede, prestes a arrumar o cômodo. Ao longo de A CAMAREIRA, o espectador assistirá à mulher e seu local de trabalho, sendo ambos personagens que se articulam, se combinam e se afastam. No eixo da relação, estão os impactos do capitalismo em uma vida humilde que, para muitos, não passaria de uma função ou de uma figura invisível. Em uma leitura marxista, a protagonista seria caracterizada como uma mercadoria tendo seu valor de uso e de troca.
Quem está nessa condição é Eve, mãe solteira que trabalha longas horas como camareira em um luxuoso hotel na Cidade do México. Ela sonha com uma vida melhor e, por isso, se inscreve no programa de estudos para adultos do próprio hotel. No entanto, logo percebe que nem sempre todo seu esforço é recompensado com o que deseja e que injustiças ou frustrações podem afetá-la, mesmo quando esperava algo mais positivo.
Eve vive em uma realidade que a faz ser apenas o trabalho que exerce. Boa parte da narrativa cumpre bem esse papel ao mostrá-la cuidando longamente da limpeza e da arrumação dos quartos, que inclui trocar a roupa de cama, limpar o banheiro, organizar os pertences de hóspedes desorganizados, atender aos pedidos e até lidar com excentricidades e arrogâncias daquelas pessoas. Então, ela precisa suportar um senhor que a destrata após acordar caído no chão embora tenha oferecido ajuda; um homem que pede bebidas, toalhas e papel higiênico sem nem olhar para a funcionária, como se esta não merecesse seu olhar; e uma mãe de primeira viagem que aparentemente a trata como amiga para lhe pedir que cuide do próprio filho e deixa o hotel após insinuar promessas de uma vida melhor para Eve. A sensação de que a protagonista seria simplesmente seu emprego ganha potência com as escolhas da diretora estreante em longas-metragens Lila Avilés, que decupa tais momentos com a ideia da monotonia que possuem através de longos planos enquadrados por uma câmera fixa.
Lila Avilés também constrói sua visão estética a partir da relação de Eve com os espaços do hotel. Nas sequências em que interage com os os hóspedes, ela parece estar em uma dimensão própria atrelada ao lugar, tendo sua existência acoplada a ele enquanto indivíduos de uma camada social privilegiada não ocupassem de fato aqueles ambientes. A mãe iniciante e o homem que não a olha nos olhos ora aparecem fora de foco, ora são parcialmente enquadrados pela câmera (deixando o rosto de fora do plano), e até agem ou falam no extracampo. Além disso, Eve aparece apenas dentro do hotel como se o mundo exterior fosse uma possibilidade de nova vida inalcançável para ela – ainda assim a Cidade do México penetra nas barreira do local e influencia a protagonista quando observa a vista fora da janela (talvez imaginando o que poderia haver lá fora) e conversa pelo telefone com o filho pequeno.
O fato de toda a construção dramática e visual girar em torno do hotel afeta a caracterização da protagonista. O roteiro de Lila Avilés e Juan Carlos Marquez não fornece tantas informações sobre Eve, sendo que ela própria não consegue se apresentar detalhadamente quando perguntada quem é (a resposta é somente “Sou Eve, tenho 24 anos e sou camareira”). O público conhece um pouco mais sobre ela (para além do seu trabalho) nas cenas em que o mundo exterior surge repentinamente e Eve conta casualmente que uma pessoa cuida de seu filho de 4 anos enquanto trabalha, assim como só consegue tomar banho de caneca em sua casa. Logo, a mulher é despersonalizada pelas condições socioeconômicas nas quais está inserida, tanto que Gabriela Cartol interpreta reprimindo as emoções de modo que Eve mal manifesta o que sente nas poucas palavras pronunciadas e na fisionomia contida estampada no rosto.
A trajetória da jovem, contudo, envolve a busca por algo além do ofício de camareira. Inicialmente, ela quer ser escolhida para ter todo o 42º andar como parte das suas atribuições para melhorar sua situação financeira e receber um vestido vermelho há muito tempo esquecido no hotel para ganhar uma recompensa extra por tanto trabalho. Nessa jornada, algumas personagens coadjuvantes desempenham papel vital inspirando Eve a despertar emoções ou atitudes que ultrapassassem as obrigações profissionais: o professor a estimula a seguir estudando e a presenteia com um livro sobre uma gaivota (possivelmente o voo do animal tomado como símbolo de liberdade); e a colega Minitoy insiste que Eve deve jogar o jogo do choque também para se entregar aos seus sentimentos gritando e gargalhando. Em um primeiro momento, ela pode até hesitar em passar por um processo de abertura emocional, mas com o tempo enfrenta a despersonalização a que era submetida.
Por outro lado, não é possível imaginar que este processo seja linear e sem contradições. Eve se sente temerosa em relação ao salto que estaria dando em direção a outra realidade, mais passional e não voltada exclusivamente para o emprego, ou é puxada de volta para a dimensão capitalista de seu ofício. Ela abandona a sala de aula sem saber como reagir ao presente dado pelo professor e tem um momento de descanso interrompido quando larga sua leitura para limpar os lençóis após sua menstruação deixar uma marca de sangue. Contudo, a protagonista não desiste tão rapidamente da possibilidade de experimentar outras vivências, como um penteado novo, a dedicação aos estudos e uma experiência sexual em um dos quartos. Apesar de tudo isso, ela entenderá que não existe um ligação imediata entre trabalho duro e reconhecimento.
O grande objetivo de Eve seria modificar sua vida para deixá-la menos dependente do local de trabalho e mais propensa a se articular com outros ambientes e atividades. Porém, colocado como obstáculo para se chegar ao mundo exterior (ou ao mundo interior da mulher) está o hotel, um microcosmo do capitalismo em um país periférico na geopolítica mundial como o México. A partir do dia em que precisa dormir no hotel, seus planos se frustram em uma escalada decrescente na qual as perdas tornam uma conquista menor – assim, ela sente na pele como o capitalismo proclama a meritocracia e, em seu lugar, concretiza inúmeras injustiças. Nesse sentido, é melancólica a sequência em que Eve sobe até a cobertura para tentar se integrar à cidade ao redor. Mesmo assim, falta algo para essa integração ocorrer, o que fica patente na forma como o olhar da câmera e do espectador coincidem com o olhar da sociedade capitalista na cena final: Eve é vista apenas em função do seu emprego e a porta giratória da saída do hotel é o limite de até onde ela existiria.
Um resultado de todos os filmes que já viu.