“RUA DO MEDO: 1994 – PARTE 1” – Contextualização da nostalgia
Na cultura das séries, é comum criar expectativas pelo que vem de um episódio a outro ou de uma temporada a outra. Aproveitando-se desse aspecto, os seriados costumam ocasionalmente aguçar a curiosidade do público ao antecipar o que está por vir com alguns flashes de cenas seguintes. No cinema, a prática não é tão frequente mesmo quando se trata de uma franquia (exceto, talvez, por exemplos como “De volta para o futuro“). RUA DO MEDO: 1994 – PARTE 1 faz parte de uma trilogia, mas lida com o projeto como se fosse uma série tanto no formato quanto na preparação dos novos filmes. Embora uma execução assim pode conter qualidades durante a contextualização do universo, o desenvolvimento da mitologia oscila na combinação de subgêneros do terror.
O projeto da trilogia produzida pela Netflix é baseado no conjunto de livros juvenis “Rua do medo“, escrito por Robert Lawrence Stine. A primeira parte se passa na cidade de Shadyside em Ohio em 1994, quando um grupo de adolescentes é perseguido por um assassino com uma máscara de caveira. Deena, Josh, Kate e Simon investigam as mortes e descobrem que não são as primeiras vítimas do psicopata, já que o local tem uma longa história de assassinatos brutais. Segundo as crenças dos moradores, esse histórico trágico teria ligação com a maldição de uma bruxa morta no século XVII.
Como contextualização do universo em construção, Leigh Janiak evidencia as referências com as quais trabalha de maneira ingênua e nostálgica. A sequência de abertura, onde acontece o assassinato no shopping, remete ao início de “Pânico” graças à ambientação dos cenários e à composição da cena do ataque mortal; a perseguição em um hospital, na qual os jovens sentem a ameaça em uma escala maior, lembra “Halloween 2” devido à equivalência do cenário e da iluminação sombria. As duas referências não são encenadas como um exercício metalinguístico, mas como demonstração de admiração por títulos marcantes para o terror e pelos anos 1980 e 1990. Enquanto a narrativa reverencia produções anteriores, existe um equilíbrio entre nostalgia e criação de uma trama própria. Quando as alusões a “It: A coisa” e “Stranger Things” aparecem no relacionamento dos protagonistas com a cidade, fica a sensação de que o algoritmo da Netflix agiu no sentido de incorporar artificialmente as preferências de uma parcela do público.
A apresentação daquele mundo também envolve a combinação entre o contexto da história e o momento da realização. Os acontecimentos se situam em 1994, então traços da década de 1990 estão presentes para ambientar as características culturais do período: Deena grava em uma fita as músicas que gostaria de enviar para sua namorada Sam; em dado momento, as duas jovem comentam sobre a banda Pixies, que teve uma fase marcante até o início dos anos 1990; Josh usa um computador com interface muito própria daquela época, frequenta fóruns de uma emergente internet e conversa com outras pessoas em serviços de bate-papo virtual. Simultaneamente, a diretora está sintonizada com as transformações correntes do presente, ao colocar as adolescentes Deena e Sam como um casal e o relacionamento queer no centro da trama – inclusive, evitando fetichizar a cena mais íntima entre elas, porque aquele momento serve para restabelecer a relação amorosa antes conflituosa das personagens.
Parte importante da contextualização do enredo de uma cidade marcada pelos crimes chocantes em sua história é o própria desenvolvimento do lugar como uma personagem autônoma. Um segmento considerável do primeiro ato se preocupa em demonstrar como o passado de Shadyside a afeta de diversas maneiras: os moradores alimentam a crença de que os assassinos foram possuídos pela bruxa Sara Fier; estudantes do colégio local espetacularizam a lenda urbana; alguns habitantes planejam sair da área e tentar a vida em outro local; uma placa com o nome Shadyside é alterada para fazer um trocadilho com a palavra “shit” (palavrão em inglês); e a cidade vizinha de Sunnyside é totalmente o oposto, sendo descrita pelas imagens dos créditos iniciais como segura e próspera. O tempo que o filme destina à rivalidade entre Shadyside e Sunnyside amplia o conflito principal com ideias interessantes, porém não é algo que se sustenta a partir do segundo ato.
Isso porque o material base e a diretora Leigh Janiak estão mais interessados em abordar o subgênero slasher. O estilo consagrado por figuras como Michael Myers, Leatherface e Jason Voorhees é trabalhado de modo apenas razoável, já que existe um potencial não explorado completamente pela narrativa. Por um lado, há méritos na composição dos três assassinos sanguinários que perseguem os jovens aparecendo inesperadamente (especialmente o mascarado com imagem de caveira, que possui mais tempo de tela para destacar o aspecto visual da máscara) e na condução realmente ameaçadora dos acontecimentos (a sequência transcorrida em uma farmácia exemplifica muito bem que a impressão de um final absolutamente feliz é uma ilusão). Por outro lado, o medo da aproximação dos psicopatas e dos seus ataques não se desenvolve plenamente, em função da falta de jump scares para ampliar a tensão e de efeitos visuais mais criativos para as cenas violentas.
Além do slasher, a obra também se apropria do terror sobrenatural de maldições e possessões. Enquanto o roteiro trabalha esse elemento como uma lenda urbana que afeta Shadyside e seus moradores, existe uma atmosfera de mistério ingênuo que combina com a abordagem nostálgica das referências do gênero. A partir do momento em que o sobrenatural se concretiza de forma mais explícita, falta uma precisão maior na elaboração da mitologia até para orientar as possibilidades da narrativa e as reações dos espectadores com as reviravoltas. Se a apresentação do universo trazia um potencial no mínimo satisfatório, seu desenvolvimento esbarra no uso atrapalhado das próprias regras estabelecidas – as explicações de como a maldição poderia acontecer, quais seriam os objetivos das possessões e as estratégias para superar as ameaças surgem em um instante para logo depois serem descartadas ou alteradas.
“Rua do medo: 1994 – Parte 1” parte de uma história de mistério de cidade pequena para chegar a um terror slasher sobrenatural. Como o ponto de partida parece mais bem resolvido do que a progressão da trama, o universo inspirado na série de livros homônimo recebe uma contextualização mais apurada dentro do gênero do que um desenvolvimento capaz de sedimentar a identidade própria do filme. A conclusão do terceiro ato convenientemente deixando pontas soltas e o epílogo propositalmente entregando pequenos indícios dos eventos da parte dois evidenciam que a produção parece ter mais vontade de ser o piloto estendido de uma série do que um filme coeso em si mesmo. Assim, a narrativa enfrenta desequilíbrios pontuais no estilo (o desencontro entre ambientação e conflitos dramatúrgicos) e no desenvolvimento da mitologia (todo o arco de um policial soa como alongamento forçado do mistério), apesar de entreter os fãs do terror em algumas passagens.
Um resultado de todos os filmes que já viu.