“MEPHISTO” – Um pacto sem neutralidade
* Filme assistido na plataforma da Supo Mungam Films (clique aqui para acessar a página da Supo Mungam Plus).
Primeiro: a preservação da memória (ou melhor, de uma parte dela). É necessário resgatar o passado glorioso, rechaçando a cultura das massas e privilegiando um elitismo cultural. Segundo: a narrativa do líder. Trata-se de uma figura mitológica, um salvador capaz de guiar a nação para o progresso vislumbrado por uma parcela da sociedade (a que inicialmente o colocou na posição de poder). Terceiro: o silenciamento das vozes dissonantes. É o “quem não está conosco, está contra nós”. O cenário, evidentemente, é o da Alemanha nazista, embora seja possível traçar paralelos com outros países e outros momentos históricos. É o mesmo cenário do grandioso MEPHISTO, de 1981.
No início dos anos 1930, na Alemanha, Hendrik Höfgen é um ator que trabalha em um teatro de médio porte, no interior, mas que sonha em alçar voos altos. Com o suporte das pessoas certas, ele chega à porta da fama e do sucesso. O preço, contudo, é alto: renunciar a quaisquer posições políticas que não sejam o apoio incondicional ao nacional-socialismo.
Diante do contexto histórico, “Mephisto” utiliza um vocabulário político de alta carga ideológica (revolução, bolchevismo etc.) e tem, ele mesmo, um ponto de vista bastante claro. Para desmontar a lenda da neutralidade, a trajetória de Hendrik vai do Teatro Total ao consentimento. No início, ele afirma que o teatro precisa cumprir uma função política. Criticamente, as peças eram, na sua visão, superficiais e burguesas. Defendendo o “Teatro Revolucionário”, não eram aceitáveis elementos como atores provincianos e público meramente passivo. Nessa ótica, haveria uma revolução teatral. Porém, como esclarecido pelo filósofo Herbert Marcuse, o nacional-socialismo jamais constituiu uma revolução. Tanto do ponto de vista socioeconômico quanto do cultural, a ideia era retomar supostos valores abandonados, tudo como pretexto para as duas facetas de um regime totalitário: intolerância e opressão.
A neutralidade se torna uma lenda porque Hendrik, como é de se esperar, sente na pele que não é possível ser neutro face a um regime autocrático. Em conversa com Juliette (Karin Boyd), ele afirma que não discute com Barbara (Krystyna Janda) porque não vale a pena debater opiniões inconciliáveis, todavia a verdade é que o que ambos falam não são apenas palavras. No campo político, não existem “apenas palavras”. Hendrik subestima os nazistas, acreditando que a oposição (comunistas e social-democratas) não permitiria avanços antidemocráticos. A grande questão é que não é possível ser neutro em uma conjuntura de tais moldes: quem não é contrário ao Reich é a ele favorável, seja por ação, seja por omissão. A lógica não é diferente em regimes fascistas mais contemporâneos, como o projeto reacionário brasileiro iniciado em 2018.
Klaus Maria Brandauer brilha no papel principal, representando não o Mephisto do título, mas aquele que celebra com o demônio o pacto faustiano. Mefistófeles é uma das encarnações do mal, uma figura demoníaca que, embora muito anterior a Goethe, tornou-se famosa em “Fausto”: o protagonista (que dá nome à obra) é um cientista frustrado pela limitação de seu conhecimento e que celebra um pacto com o demônio Mefistófeles para receber benefícios em troca da entrega de sua própria alma. A metáfora do roteiro escrito por Péter Dobai com o diretor István Szabó (baseando-se no livro de Klaus Mann) é bastante óbvia: Fausto quer eternidade e conhecimento, Hendrik, fama e sucesso; Fausto celebra o pacto com Mefistófeles, Hendrik, com o Primeiro-Ministro do Reich. Não importa a encarnação, o mal é sempre idêntico – e sempre haverá alguém que consente com a maldade, ainda que por conivência.
Brandauer dá a Hendrik um tom farsesco, basta ver o desespero com a aclamação de Dora, a primeira interação com Juliette ou a empolgação no ensaio da dança movida ao Can Can de Offenbach. O protagonista fala consigo mesmo porque se preocupa apenas consigo mesmo. Tem inveja das atrizes que fazem sucesso e é inseguro o suficiente para pedir a repetição de um elogio. Juliette o enxerga como frágil e mascarado, o que condiz com as suas atitudes: o olho lacrimeja quando tem uma oportunidade de trabalho em Berlim (fragilidade); ele aceita assinar (e assim legitimar) a arte “pura” aprovada pelas autoridades nazistas (mascaramento). Não se trata de uma mudança, Hendrik é sempre passivo (mesmo quando sutilmente humilhado pelo aperto de mão “suave”, por exemplo). Quando ele tenta ajudar os amigos, não o faz por altruísmo, mas por misericórdia.
A direção de Szabó é arrasadora, como na maquiagem assustadoramente demoníaca colocada em Hendrik quando ele encena o papel que lhe deu fama (e que metalinguisticamente dá o nome ao filme) e no grand finale (que é de tirar o fôlego). Algumas cenas são simplesmente geniais (por exemplo, a que Mephisto cumprimenta o Primeiro-Ministro no teatro e a que Hendrik é cercado em roda em um evento social). Outras são também impressionantes (é o caso da que envolve crianças). O longa fornece flashes do regime (o homem apanhando na saída do teatro, as mortes “acidentais”) para mostrar que o protagonista está cercado de práticas de uma ditadura com a qual consente. A montagem veloz faz com que a progressão narrativa seja sentida algumas vezes agressivamente, como se os cortes fossem palpáveis não na tela do filme, mas no corpo do espectador. Tudo ocorre rapidamente para mostrar o quão fácil Hendrik se colocou na teia nazista, da qual não faz questão de sair tão cedo.
De acordo com Hendrik, todos os nazistas são bandidos e a sujeira deles pode contaminar os demais. O pacto faustiano visa a objetivos pessoais a despeito de quaisquer outras circunstâncias, isto é, de suas consequências e do outro sujeito do pacto. É indiferente o grau do envolvimento, pois quem se alia ao mal, por qualquer forma, com ele se identifica. Quando existe uma figura contrária aos ideais democráticos, não é possível ser neutro, pois neutralidade, nesse caso, implica concordância.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.