“AMMONITE” – O inesquecível já visto antes
Com um pouco de “Retrato de uma jovem em chamas” (clique aqui para ler a nossa crítica) e um pouco de “Carol” (clique aqui para ler a nossa crítica), AMMONITE é um filme que seria melhor se tivesse uma identidade própria. Como os dois precedentes, trata-se de um romance entre duas mulheres bem diferentes e que se passa em uma época pretérita. Não há nele a originalidade recomendável, o que não significa, contudo, que não tenha seus predicados.
Mary Anning trabalha com paleontologia, o que garante o mínimo para o sustento de si própria e de sua mãe, já idosa, com quem vive em uma inóspita cidade do interior da Inglaterra. Certo dia aparece um homem rico vindo de Londres, que reconhece a contribuição das suas escavações e lhe faz uma proposta financeiramente vantajosa. Em razão da contratação, Mary se aproxima de Charlotte, sua esposa, em medida maior do que a imaginada.
O diretor e roteirista Francis Lee articula muito bem o visual com o enredo do longa. A cidade onde mora a protagonista é cinzenta, sempre nublada, salvo em duas cenas. Na primeira, Mary vai à casa de uma conhecida para comprar uma pomada, encontrando no local um belo jardim florido cuja trilha sonora é o canto dos pássaros (som até então não ouvido no longa). Na segunda, Mary e Charlotte dividem um terno momento ao entrar no mar, no qual o Sol mostra que seus raios também alcançam o local. O trabalho com as cores também demonstra esmero: na casa de Charlotte, as paredes têm cor verde (que acaba sendo a sua cor), porém a porta é de cor marsala, a mesma do vestido de Mary, o que as conecta imageticamente.
A cor verde é a cor de Charlotte porque é a de maior presença em seus vestidos – diversamente de Mary, que costuma usar azul escuro. Há coerência com suas personalidades: Charlotte é empolgada, simpática e sociável, ao passo que Mary é retraída, normalmente antipática e nada sociável. Esta manifesta afeto ao afirmar que, no mesmo período, em outra época, estava mais frio (querendo dizer que a outra trouxe calor para a cidade); aquela não se importa em manifestar afeto na frente de uma empregada. A sequência em que elas vão a um evento social mostra bastante do comportamento das duas, além de representar o melhor momento da ótima atuação de Kate Winslet. Com ela, Mary é fechada e parece estar constantemente indisposta (a tudo e em relação a todos); na sequência mencionada, com microexpressões faciais e olhar fulminante, o som do violoncelo apenas não é engolido porque coerente com o ritmo da atuação desferida pela atriz. Saoirse Ronan também tem boa atuação, mas é um papel mais modesto.
Os vestidos de Mary costumam ser em estilo xadrez, o que simbolicamente mostra que ela está enjaulada. Na clausura em que se encontra, sua mãe, Molly (Gemma Jones), a observa de longe apenas porque está sempre à espreita, como se da filha fosse proprietária – não por outra razão, Molly afasta Charlotte de seus “bebês”. Na verdade, são meros objetos, mas a moça representa uma intromissão indevida que precisa ser reprimida. Mary também não aceita ser expressamente objetificada, o que a faz rejeitar, de início, a proposta de Roderick (James McArdle). Talvez a intimidade com Charlotte só tenha se tornado possível porque a protagonista saiu da jaula que criou, o que se manifesta em seu olhar e, principalmente, pelo tato, como ao colocar compressas na jovem e passar pomada na sua pele.
Na mise en scène, o diretor revela insights magníficos, mas também equívocos elementares. Quando Mary está no Museu Britânico, o enquadramento em que seu rosto parece uma das pinturas (enquanto, na realidade, a parede tem apenas retratos masculinos) é uma forma sagaz de reforçar o minúsculo espaço dado à mulher no século XIX. Por outro lado, as cenas de nudez e sexo expressam um voyeurismo nada coerente com o mote da película, uma desnecessária espetacularização recorrente no cinema. “Ammonite” é sobre muitos assuntos, não tanto – como geralmente se poderia esperar – sobre preconceito, mais sobre o papel social da mulher, que é exposto por duas mulheres que estão em polos, de certa forma, antagônicos (uma cientista independente e uma esposa reprimida).
O subtexto do filme é plural e vai da nulidade de reconhecimento à mulher na ciência ao menosprezo da saúde mental. Francis Lee não coloca o abismo de classe social entre Mary e Charlotte de maneira textual, em parte porque isso não seria necessário, dada a ampla demonstração visual (uma se veste sozinha na frente da mãe, a outra tem uma empregada que coloca nela o espartilho; uma sobe uma colina para desenvolver o próprio trabalho; a outra não sabe sequer cortar uma cenoura). Tudo isso, entretanto, já foi visto antes em inúmeros outros filmes, de formas bem distintas ou um pouco semelhantes, a depender do caso. “Ammonite” é tecnicamente correto, mas não faz questão de ser inesquecível, contentando-se com o muito bom. Sendo apenas o segundo trabalho em longa-metragem de ficção no currículo do diretor (o anterior, “O reino de Deus”, é também muito bom), com mais ousadia pode ser que ele se torne um nome a ser lembrado (ao contrário dos seus dois primeiros filmes).
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.