“ELITE” [4ª TEMPORADA] – Assuma o que tu és
Guilty pleasure é um conceito curioso. Traduzindo ao pé da letra, significa prazer com culpa, o que no campo das artes seria apreciar uma obra mesmo que se reconheçam características de gosto “duvidoso”. A curiosidade está no fato de algumas pessoas defenderem o uso da expressão, argumentando que valeriam para produções que despertam prazer em quem assiste, mas são socialmente questionáveis; enquanto outras pessoas a rechaçam, afirmando que, se a experiência foi prazerosa, é possível apontar justificativas para embasar as reações positivas. Com o lançamento da quarta temporada de ELITE na Netflix, essa discussão pode ser retomada considerando análises já feitas que compararam a série a uma telenovela juvenil.
Indiscutivelmente, o seriado tem um apelo forte entre os jovens e os novos capítulos mantêm a influência forte sobre essa parcela do público e semelhanças com o melodrama. Na trama da vez, personagens antigas saíram (Nadia, Lucrecia, Carla e Valerio), figuras já conhecidas permaneceram (Guzman, Samuel, Cayetana, Rebe, Ander e Omar) e novas aquisições foram feitas ao elenco. A maioria das mudanças tem ligação com a chegada de Benjamín para ser o diretor do colégios Las Encinas, que leva consigo para estudar ali os filhos Ari, Patrick e Mencía. A presença dessas quatro novas personagens desestabiliza as dinâmicas até então existentes na escola, o que ocasiona conflitos capazes mais uma vez de assumir a forma de um mistério e uma tentativa de assassinato.
A partir de um ângulo discutível, a produção já foi desvalorizada por ser encarada como uma telenovela e, portanto, algo por essência inferior. Tais argumentos nem sempre consideravam as diferenças no uso da linguagem audiovisual para séries e telenovelas, pois muitas vezes apenas pressupunham uma hierarquização dentro da arte. Em um discussão nesses termos, é importante pontuar que uma narrativa novelesca pode ter méritos e a série espanhola pode se apropriar com eficiência desses elementos. Por exemplo, a construção estética ajuda a reforçar o estilo mais dramático sem tanta ambiguidade, como se vê na utilização expansiva das cores quando Guzman, Ari, Ander, Patrick e Phillipe chegam a uma festa ou no contraste definido pela montagem paralela entre as atitudes de Cayetana e Mencía e na contextualização dos conflitos de diferentes núcleos pela narração em voice over de Benjamín. E quando os arcos narrativos de cada personagem são examinados, é possível notar um desenvolvimento direto, sem rodeios ou construção gradual – todas as interações são apresentadas rapidamente e as reformulações em cada segmento ocorrem logo que o espectador imagina o que pode vir.
Da mesma maneira que as escolhas formais não precisam ser sutis, a separação das personagens em núcleos autônomos também pode ser benéfica para o fluxo narrativo e para a progressão dos conflitos. Apesar de a rigidez do novo diretor com os estudantes não ser algo que se desenvolva como o início prometia, há outras subtramas capazes de envolver e criar situações dramáticas expressivas. O relacionamento entre Cayetana e o príncipe Phillipe abrange diferenças sociais e econômicas, violência contra a mulher (a partir do passado conturbado de Phillipe em sua terra natal) e a evolução de Cayetana como uma figura ainda mais complexa (através da percepção de que seus sonhos não podem apagar sua dignidade). E a relação entre Rebe e Mencía se desenvolve enfrentando uma série de obstáculos criados por suas questões familiares (a mãe traficante de Rebe e a rebeldia de Mencía junto ao pai e aos irmãos) ou pela presença ameaçadora de Armando em uma mistura de sexo, dinheiro e opressão de gênero.
Outros segmentos detacados na trama envolvem dois triângulos amorosos e também não cansam o público com conflitos que custam a avançar. Um deles envolve Omar e Ander, que tem o namoro afetado pela chegada de Patrick e pelas dúvidas que os três passam a ter em relação aos sentimentos mais profundos e à atração física – nesse sentido, este relacionamento se transforma com o passar do tempo em novas configurações que trazem à tona questionamentos para o romance de Omar e Ander. Enquanto isso, Guzman, Ari e Samuel formam também um triângulo entre eles, desenvolvido a partir da atração que Ari começa a ter pelos dois jovens (embora nem sempre as relações entre eles intensifiquem a sensação de que ela estaria interessada por ambos) – tal dinâmica é mais eficiente ao resgatar a rivalidade da primeira temporada entre Guzman e Samuel, motivada por diferenças de classe e pela desigualdade de oportunidades nas vidas dos jovens.
Frequentemente, as telenovelas são igualmente criticadas por atenderem a um perfil de espectador muito específico, no caso em questão para adolescentes e jovens adultos. Porém, é possível pensar em alguns pontos: o impacto positivo de uma obra depende apenas da busca pela “universalidade”? Um direcionamento mais específico inevitavelmente sempre alienaria outras audiências? A avaliação não estaria exigindo que a produção apresentasse o que não faz parte de seu universo e proposta? E aspectos teoricamente voltados para o público juvenil não podem se desdobrar em reflexões mais amplas? Tais interrogações podem não ter respostas simples nem definitivas, mas um caminho para debates futuros pode vir dessa quarta temporada que diminui a influência do mistério na narrativa (são flashes na abertura e na conclusão dos episódios e ainda assim não valorizam o suspense da investigação) e dispensa totalmente a exposição de temas sociais (algo presente na primeira temporada). Isso porque o seriado assume de vez a apropriação de convenções novelescas como sua maior qualidade e não se obriga a ser o que não é seu forte.
Reconhecer e potencializar suas virtudes é a postura que se pode sentir nos oito capítulos da temporada, especialmente a sensualidade existente na história desde a estreia em 2018. Cenas de sexo e nudez, momentos de grande atração física, reviravoltas amorosas e diversas possibilidades de relacionamento já existiam anteriormente, mas agora a narrativa destaca ainda mais esses aspectos (os núcleos se alternam para mostrar situações íntimas, as festas acontecem em maior quantidade e os casais se multiplicam) e os desenvolve de modo direto (a tensão sexual nos dois triângulos amorosos é compreendida graças à composição da mise-en-scène buscar os olhares e os contatos físicos evidentes entre as personagens). Sendo assim, o elenco encontro suas forças como um grupo integrado e não como atores ou atrizes destacados isoladamente, desde os veteranos no projeto Miguel Bernardeau, Itzan Escamilla, Arón Piper, Omar Ayuso, Georgina Amorós e Claudia Salas, até os novatos Manu Ríos, Carla Díaz e Martina Cariddi.
“Elite” pode, então, servir como exemplo de discussão para a questão dos guilty pleasures. Podem até existir livros, séries e filmes que dividem opiniões e geram reação acaloradas, entretanto sustentar um conceito como este pode significar atitudes questionáveis diante da arte: haveria realmente um padrão para determinar o que poderia ser celebrado sem receios? A experiência emocional não seria o primeiro impacto de uma obra sobre o público e não a racionalização rígida do que seria bom? Não seria possível apreciar algo sem culpa enquanto se percebe problemas ou deficiências? Dessa forma, o desfecho dessa quarta temporada não precisaria ser considerado como essencialmente ruim por se apropriar de características da telenovela; a resolução do mistério em torno da personagem agredida pode não empolgar e ter elementos inverossímeis; e, ainda assim, as sensações deixadas podem ser satisfatórias diante das personagens que se despedem e aquelas que chegam. No conjunto, pode haver prazer e sem culpa.
Um resultado de todos os filmes que já viu.