“LUCA” – O deslumbrante contato com o desconhecido
Ao longo da história e das produções artísticas, o desconhecido e o diferente de certo padrão social já foram tratados como fonte de medo ou alvo de depreciação. Afinal, são inúmeros exemplos históricos de encontros entre povos e culturas em que uma das partes inferiorizava a outra (os europeus no contexto das Expansões Marítimas em relação aos africanos e americanos, por exemplo) e cinematográficos de filmes de terror em que a ameaça vem do que não se conhece e se projeta com um viés intolerante (como fizeram alguns folk horror em relação a comunidades rurais de crenças distintas). Porém, seriam essas as únicas percepções possíveis para o desconhecido? LUCA demonstra que ele pode ser um convite ao encantamento e à tolerância.
O novo filme da Disney/Pixar acompanha as aventuras do jovem Luca na bela Riviera italiana, onde passa um verão inesquecível com seu novo amigo Alberto. Os dois chegam a uma pequena vila querendo uma motoneta com a qual podem viajar por diferentes lugares. O que os leva a participar de uma competição em três etapas. Entretanto, o segredo que possuem pode colocar tudo em risco: em terra firme, são dois meninos comuns, já abaixo da superfície da água são animais marinhos considerados monstros pelos humanos.
No primeiro ato, a animação evoca o medo pelo desconhecido diante de espaços/realidades distintos dentro de uma perspectiva que remete às lendas e mitos durante as Grandes Navegações da Idade Moderna. Pescadores e navegadores temiam os mares e as longas viagens por conta das crenças em monstros marinhos, assim como as personagens humanas moradas desta vila italiana se assustam e caçam tais “monstruosidades” nas águas próximas como na sequência inicial. Ao invés de sustentar apenas o ponto de vista dos humanos, o diretor Enrico Casarosa leva a câmera para o fundo do mar para humanizar as criaturas como já se tornou marca registrada da Disney/Pixar. O protagonista tem uma vida, uma família e um cotidiano que o levam a seguir as regras de não subir à superfície por causa dos monstros terrestres que matam qualquer espécie animal – a ótica se inverte, mas o temor frente ao inexplorado se mantém. Tal como o pai Marlin de “Procurando Nemo“, a mãe Daniela superprotege o filho contra eventuais perigos; e o paralelo se completa com Nemo e Luca sendo jovens curiosos e ávidos para explorar o mundo.
Humanizar as espécies animais, portanto, alcança a ideia da produção e simboliza como a humanidade pode subestimar dimensões consideráveis do planeta. O lembrete que os animais não são figuras irracionais e possuem uma lógica própria transborda na forma como os efeitos digitais supervisionados por Laura Beth Albright caracterizam as personagens, misturando traços de diferentes espécies: é possível ver caudas, escamas e nadadeiras, mas cada parte é desenhada como se fosse um bigode ou um corte de cabelo. Não se limitando somente a uma camada do mar, a narrativa também menciona as lacunas do conhecimento a respeito dos níveis mais profundos, onde a taxa de oxigênio é menor e as criaturas podem ter características diversas – quando a família do jovem insiste que ele deve ficar nas profundezas por sua própria segurança, aparece um tio que cuidaria dele, sendo caracterizado de maneira particular com a pele transparente e os órgãos visíveis (uma aparição que rende um dos momentos mais cômicos da obra).
Daniela e o marido Lorenzo se preocupam com o filho desde que notam o interesse crescente do menino de desbravar o mundo subindo à superfície. Isso porque Luca conhece e se aproxima de Alberto, com quem desenvolve uma amizade sensível e libertária destinada a descobrir uma nova vida. Enquanto se divertem e se conectam emocionalmente, eles atravessam seus próprios processos de descoberta e amadurecimento: Luca desafia o medo de se arriscar por incentivo de Alberto (então aprende a andar, conhece objetos comuns como um gramofone e uma motoneta, vivencia situações prosaicas de construir objetos e fazer reparos…). já Alberto encontra um companheiro que o liberta da solidão por ter seus sonhos reprimidos (buscava sempre sair da ilha onde vivia para conhecer a vila dos humanos). A dinâmica entre os dois ocorre tendo como símbolos o desejo de conseguirem uma motoneta da marca Vespa para viajar livremente e a frase “Silêncio, Bruno” para sufocar a voz interior que desencoraja experiências novas.
Então, não leva tanto tempo para que os amigos construam uma relação baseada na diversão e nas influências que um exerce sobre o outro. Nesse aspecto, faz algum sentido a analogia que algumas pessoas estão fazendo com “Me chame pelo seu nome” não por conta de sugestões de uma interação romântica entre Luca e Alberto, mas porque é perceptível o amor fraternal que nutrem reciprocamente – além dos momentos em que se abraçam ou fazem outros gesto afetuoso, os diálogos e as atitudes demonstram como a amizade é tão benéfica para ambos. Desde o primeiro encontro entre eles, a animação apresenta um elemento adicional para a perspectiva positiva sobre o desconhecido, seja realista, seja fantasioso, ao levar as personagens para novos cenários. Luca (e o público consequentemente) se deslumbra com uma paisagem diferente do mar, que inclui montanhas, céu, nuvens e sol, concebida com a costumeira fidelidade da Disney/Pixar; e os dois meninos exercitam a imaginação e o senso de liberdade quando andam de motoneta improvisada de modo a parecer que estão voando, chegando a projetar como seria o universo segundo suas próprias referências.
Quando a aventura em busca da obtenção da Vespa começa, os dois jovens se deslocam para a vila onde a questão da descoberta do desconhecido novamente se ressignifica. No segundo ato, Luca e Alberto conhecem o vilão Ercole, que sempre vence a competição local, e a jovem Giulia cuidada pelo pai Massimo, ela também presença constante no evento esportivo mesmo sem nunca o ter vencido. Durante os dias de treinamento, o filme reafirma a possibilidade de situar suas histórias em regiões variadas de diferentes culturas (apesar de críticas coerentes quanto à língua predominantemente usada), optando especificamente pela Riviera italiana (não se trata de uma área nem de um país absolutamente desconhecidos, porém não é o cenário mais habitual para as animações estadunidenses). Logo, marcas ou referências à Itália estão integradas plenamente à narrativa, como a beleza da paisagem costeira inspirada na região de Cinque Terre, os hábitos de uma comunidade associada à pesca e à vida próxima ao mar, o uso de expressões ou frases evocativas da cultura italiana e o fato de a competição sob a forma de triatlo conter no lugar de corrida a ingestão veloz de um prato de massa.
O que poderia ser uma representação complexa apenas de diferentes ambientes e modos de vida (por si só questões já poderosas para a dramaturgia) vai além e possibilita o desenvolvimento singular de algumas personagens, quebrando expectativas tentadoras. Por mais que a comédia se faça muito presente (na preparação para a competição, no esforço de Luca e Alberto para terem suas identidades reveladas e nas tentativas de Daniela e Lorenzo de encontrarem o filho), há elementos e conflitos dramáticos ricamente construídos: a condição física de Massimo dispensa explicações fáceis culpando “monstros” marinhos, a amizade de Luca tem um valor ainda mais significativo para Alberto do que se imaginava e a jornada do protagonista oferece novas motivações para ele. Quanto a esses últimos pontos, a amizade entre os meninos se desenvolve com uma complexidade tocante, passando por dúvidas, desentendimentos e reconciliações orgânicas para aquela relação – a cena em que discutem em frente ao mar é sintomática da turbulência emocional natural para a idade.
Não é surpresa alguma se emocionar com os filmes da Disney/Pixar. Isso não é diferente em “Luca” com a espontaneidade de uma amizade tão carinhosa e a empatia gerada pela caracterização visual de Luca Alberto e pela dublagem de Jacob Tremblay e Jack Dylan Grazer. Mas, especialmente, porque o terceiro ato solidifica as dimensões que podem proporcionar ao desconhecido lugares encantamento de e tolerância: não precisa haver monstros marinhos ou terrestres; realidades diferentes podem coexistir pacificamente; os pais não conseguirão impedir eternamente os filhos de desbravarem o mundo por conta própria; as amizades pedem desprendimento e olhar sensível para o outro; e pessoas/grupos discriminados podem encontrar suas áreas de conforto apesar dos preconceitos existentes. E se os obstáculos parecerem intransponíveis, é possível se esforçar para mandar um sonoro “Silêncio, Bruno” para dentro de si mesmo ou para parcelas da sociedade.
Um resultado de todos os filmes que já viu.