“AWAKE” – Universo sem lucidez
Algumas distopias e fantasias contemporâneas propuseram a desestabilização da realidade comum a partir da perda ou suspensão de atividades básicas do corpo humano. O que poderia ser descrito pelo viés do terror pode também assumir uma ótica fantástica ou de ficção científica, especialmente ao imaginar como este aspecto poderia dizer muito sobre os temores do presente. Foi assim, por exemplo, que “Filhos da esperança” abordou a incapacidade de gerar vida, “Birdbox” trabalhou a impossibilidade de usar a visão e “Um lugar silencioso” questionou o senso de audição. Um caminho semelhante poderia ter sido tomado por AWAKE em relação ao sono, desde que houvesse maior cuidado com o universo diegético e estético proposto.
Na trama, Jill é uma ex-soldada que trabalha na segurança de uma universidade após ter tido um passado conturbado de vício em drogas. Quando um fenômeno enigmático atinge a Terra, extinguindo a energia elétrica e impedindo as pessoas de dormirem, ela é a única que possui uma chave para recuperar o equilíbrio do planeta: sua filha Matilda ainda é capaz de dormir. Assim, Jill embarca em uma jornada com Matilda e o filho Noah em busca da sobrevivência, enquanto toda a humanidade sente os efeitos de uma prolongada privação do sono.
Mesmo que os filmes citados anteriormente despertem reações distintas, todos eles constroem um universo reconhecível que se desenvolve como experiência sensorial e progressão da história. Porém, a nova produção original Netflix não consegue fazer avançar uma premissa para além do evento catalisador – a sequência em que a família protagonista está em um carro quando o fenômeno começa cumpre bem o papel desorientador e perigoso da situação. Com o transcorrer da narrativa, o diretor Mark Raso simplesmente ilustra o roteiro, de sua autoria em conjunto com Joseph Raso, de modo burocrático sem conferir uma abordagem visual própria aos elementos dramáticos (sendo que oportunidades existiram para criar momentos mais marcantes para a descoberta do bloqueio do sono e de seus impactos a longo prazo). Além disso, a falta de uma encenação criativa faz com que diálogos expositivos ou confusos sejam proferidos pelos cientistas e militares, comprometendo a decisão dos realizadores de dar respostas científicas coerentes ao que acontece.
Poderia ser mais proveitoso para a narrativa investir na dimensão fantasiosa da proposta e deixar explicações em aberto, pois a escolha de detalhar as consequências da impossibilidade de dormir gera contradições com as quais a obra não consegue lidar. Em primeiro lugar, a perda de lucidez apenas aparece quando convém e desaparece também quando interessa – se os protagonistas custam a sentir os primeiros sintomas, as personagens coadjuvantes são afetadas antes do tempo mencionado pelo roteiro, como se observa nas cenas em uma igreja. À medida que o conflito central se desenrola, o cineasta parece igualmente perdido na forma como deveria encadear cada nova situação, o que desencadeia a sensação de que tudo poderia ser aleatório e não um esforço consciente da produção. Por conta disso, o espectador não sabe ao certo se o foco é a luta pela sobrevivência. a realização de cenas de ação, os ensinamentos par Matilda se preparar para um novo mundo ou o desenvolvimento de uma trama de ficção científica que imagina uma espécie de apocalipse.
Em certa medida, é uma ironia (e não positiva) cogitar a possibilidade de a narrativa ter absorvido a perda de lucidez própria da privação do sono. Isso porque a montagem não confere unidade nem coerência às mudanças de cenário e de etapas ao longo da jornada, principalmente quando Jill, Noah e Matilda entram em uma biblioteca e os jovens aparecem subitamente na entrada do centro científico – era de se esperar que Mark Raso pudesse tornar essas lacunas um recurso simbólico representativo da condição incomum das personagens, mas a estratégia não é utilizada recorrentemente a ponto de não soar como falhas nos processos na ilha de edição. A ausência de uma ideia artística também atinge a decupagem das cenas de ação porque, a princípio, o cineasta filma tais momentos em planos longos sem cortes que evocam grande tensão; já nas demais oportunidades, o efeito sensorial se enfraquece por não valorizá-lo (a frieza com a qual é filmado um ataque a uma loja) e por reduzi-lo a uma referência empobrecida a “Filhos da esperança” (a inexistência de novos sentidos para o ataque a um carro em movimento).
Outro sintoma causado pelas muitas horas acordado é a perda da coordenação motora com espasmos musculares. Ao invés de trabalhar esse ponto como mais uma possível camada de conflito, o filme desperdiça potencial dramático, assim como já havia feito com as alucinações, no segmento final no centro científico. Nesse ambiente, Jill enfim demonstra alguma desorientação apesar de a ideia de retirar o foco das imagens ser clichê e momentânea; as personagens secundárias são interpretadas da maneira mais caricatural com tiques nervosos que surgem e desaparecem aleatoriamente; e, por fim, a desorganização do fluxo de acontecimentos e as atuações fora de tom prejudicam o envolvimento emocional do público com aquelas figuras. Um prejuízo que já se poderia sentir anteriormente, devido ao fato de o passado da protagonista jamais ser explorado dramaticamente e às fragilidades da criação do universo comprometerem o vínculo com Gina Rodriguez – é difícil sentir o desespero e a desorientação da personagem em uma jornada de construção tão caótica.
Em virtude de tudo que aconteceu (e não aconteceu) nos primeiros atos, o clímax é uma síntese efetiva de uma premissa promissora esvaziada por um universo sem coerência interna. A sequência de ação final poderia ser orgânica caso tivesse sido preparada previamente sabendo como integrar a extrapolação da realidade, as características da distopia, a sucessão crescente de ameaças e os conflitos suscitados pela perda do controle do próprio corpo. Quem sabe assim a narrativa deixaria de se parecer como uma vítima do mal abordado pela diegese? De ser desconexa de um bloco para outro como se perdesse a coordenação das cenas? Ou ainda de ser incoerente como um conjunto em que as partes não se comunicam dentro de uma unidade artística. Possivelmente, estes seriam ingredientes para a fabricação de uma cura contra um final de gosto tão duvido quanto este.
Um resultado de todos os filmes que já viu.