“FIRST COW – A PRIMEIRA VACA DA AMÉRICA” – Vestígios de vidas pequenas
A tragédia da coisa passada é saber seu fim. Deste pequeno e belo filme, que trata dos tempos idos, comecemos de trás pra frente, portanto do presente, a hora atual do mundo, o filme todo assistido. Quando Lu se deita ao lado de Cookie, ferido e incapaz de seguir adiante, ao final de FIRST COW – A PRIMEIRA VACA DA AMÉRICA, somos convidados a revisitar a cena de abertura do filme de Kelly Reichardt, no qual o cachorro de uma jovem mulher encontra, enterrados, os vestígios de duas vidas passadas, seus restos lado a lado, em descanso. Reichardt não é, nunca foi, o tipo de cineasta que esconde as chaves para seus filmes por trás de enigmas e simbolismos, e aqui não é nada diferente. Por que, então, é mais importante vermos a morte como vivo vestígio, e não como o parto dos cadáveres?
Os ossos enterrados pertencem a Cookie e Lu. Em meados do século XIX, Cookie (o subestimadíssimo John Magaro) é um cozinheiro que viaja com um grupo de caçadores, mercadores de pele, ao qual ele claramente não pertence e não quer pertencer. Lu (Orion Lee), com quem Cookie esbarra certo dia, é um imigrante chinês fugitivo, que assassinou um homem russo. Deste encontro – de tempos e espaços, culturas e línguas, nasce uma discreta e silenciosa amizade. Cookie permite que Lu escape, e nas próximas semanas se encontram constantemente, numa pequena cabana, e conversam sobre o futuro e o passado, sobre os sonhos e a realidade. Cookie, pouco tempo depois, toma conhecimento da chegada de uma vaca na região, propriedade de um aristocrata inglês, a tal “primeira vaca”.
O cenário criado não é grande novidade para os familiarizados com o cinema de Reichardt, que sempre prezou pelos contos de fronteira, pelos causos de classes mais baixas, pela economia narrativa e estética. “First Cow” segue essa tendência sem grandes desvios. Trata-se de mais uma de suas histórias que vão do micro ao macro. A chagada da vaca no Novo Mundo, a redescoberta do trabalho na ordenha, da alimentação nos biscoitos fritos, da família na camaradagem – são todos elementos postos para que se discorra certa análise sobre a natureza dessas coisas todas, sobre o que forma nossos laços sociais, onde nasce nossa comunidade.
Mas como na sociedade de fato, as criações e descobertas não são puras nem inteiramente louváveis. Para que Cookie e Lu possam fritar os biscoitos que encantam a todos, precisam de leite. Para terem leite precisam rouba-lo. O roubam de Chefe Factor (Toby Jones), que por sua vez rouba leite da vaca. E eis o ciclo que funda a América, que funda a sociedade, o trabalho, a família. “First Cow” não ignora, portanto, os aspectos hobbesianos da fundação de nossas comunidades, o lado sombrio que é sempre necessário para que as coisas cresçam. Torna-se a questão mais importante, assim, a de qual aspecto mais interessa ao cinema de Reichardt (não só aqui, mas em toda a sua filmografia). Retornamos, então, a cena que abre o filme, a pergunta que abriu este texto. O cinema de Reichardt está constantemente tentando encontrar saídas, descobrir a humanidade onde ela parece não mais florescer. É o caso de “O Atalho”, de “Certas Mulheres”, é o caso de “Wendy e Lucy”, e é indubitavelmente o caso de “First Cow”.
As impressões que ficam após a sugestão da morte iminente de Cookie e Lu não é negativa, longe disso. É, ainda, de alguma forma, quase calorosa, acolhedora. Tudo em no filme trabalha para isso, desde a escolha pela proporção de tela mais fechada, mínima; até as cores amadeiradas, quente e escurecidas que abraçam o interior e arredores da cabana de Lu; até as sutis, silenciosas e precisas atuações de Lee e Magaro. Ao final da história, os dois amigos se deitam, sem sombra de dúvidas, para morrer, mesmo que ainda não saibam disso. Mas a história não é essa, de seus fracassos. É a de suas sobrevivências, das marcas que deixam no mundo, dos prazeres que promovem e experienciam, de seus papéis na assustadora e opressora história da História, por assim dizer. Se morrem, é para serem redescobertos.