“OXIGÊNIO” – Sacrifícios para a sobrevivência
Era de se esperar que não levaria muito tempo para que o cinema incorporasse a pandemia do coronavírus e suas consequências em histórias, subtextos e abordagens estéticas. Foram filmes, como “Host“, “Isolado na pandemia“, “#Alive“, “Voltei!” e “República” que buscaram captar o momento em questão ou podem ser apreendidos à luz da crise sanitária e social vigente. Perspectiva semelhante pode ser atribuída a OXIGÊNIO, nova produção original Netflix, que aborda o isolamento forçado e os desdobramentos dessa condição para a vida na Terra. A grande questão é: será que este e outros subtextos foram valorizados dentro das escolhas estilísticas da ficção científica?
Na trama, Elizabeth acorda presa em uma câmara criogênica sem lembrar quem é e como foi parar ali. Ávida para entender o que está acontecendo e escapar do confinamento, ela deve agir com calma e precisão em uma situação limite que impõe justamente o contrário. Isso porque quanto mais o tempo passa e suas emoções ficam afloradas, a taxa de oxigênio disponível diminui e suas possibilidades de sobrevivência se tornam mais escassas.
Uma proposta com essas características remete imediatamente a títulos como “Enterrado vivo” e “Gravidade“, nos quais os protagonistas se veem aprisionados em um espaço restrito tendo que fugir apesar de não controlarem as variáveis daquela situação. Na obra em questão, esses fatores opressivos são apresentados claramente desde o início: a mulher está sem memórias (até do próprio nome); está envolvida por um “casulo” orgânico protetor e de seu corpo saem tubos intravenosos; está em uma cápsula de tamanho reduzido, onde permanece deitada; e obtém poucas informações de seu estado da inteligência artificial chamada M.I.L.O. (na voz de Mathieu Amalric). E quando tenta se comunicar com o mundo exterior esbarra na mediação de M.I.L.O., que não entende comandos informais, se mantém ligado ao que sua programação permite e não pode explicar totalmente o que houve com Elizabeth – embora tais dificuldades existam, ela consegue contatar a polícia e utilizar os dados da inteligência artificial a seu favor.
Porém, o acesso limitado ao mundo exterior que a personagem consegue não é tão bem trabalhado pelo roteiro de Christine LeBlanc. Todas as pessoas com quem Elizabeth fala parecem esconder segredos ou simbolizar alguma conspiração maior, ambos elementos que tornam a narrativa inchada tendo que lidar com muitos conflitos e mistérios. Por outro lado, a mulher também se projeta para fora da cápsula através de flashes de memória que surgem para mostrar breves momentos de sua vida pessoal e profissional – inicialmente, a entrada dessas cenas soa aleatória e sem maior peso dramático, mas com o tempo, elas adquirem um efeito emocional que a leva a querer se conectar com seu passado e com aqueles indivíduos que a marcaram. Ainda assim, a explicação e a concretização visual dos atos desencadeadores das lembranças parecem simplificados, como algo facilmente administrado por vontade própria.
Mesmo que o filme faça paralelos com o contexto pandêmico atual (uma doença que devasta a população mundial, a impossibilidade de se mover livremente, o descompasso entre o mundo do lado de fora e o espaço confinado, as dores emocionais da solidão…), seu maior mérito é a experiência sensorial que propõe. O diretor Alexandre Aja cria sequências que coloca o espectador no lugar da protagonista passando por instantes aflitivos e sufocantes: flashes rápidos, enquanto ela se liberta do casulo e dos tubos, encadeados por uma montagem dinâmica; iluminação avermelhada típica do desespero que antecede uma morte lenta na cena de abertura; delírios com a aparição de ratos resultantes da queda do nível de oxigênio e da tensão quanto ao futuro; closes e primeiríssimos planos evocativos das variações emocionais de Elizabeth; planos mais abertos, representativos do isolamento da mulher; e mudanças repentinas no foco da imagem, simbólicas da desorientação espacial. Esses e outros recursos formais sustentam o ritmo da narrativa sem maiores oscilações e impedem o marasmo e a repetição visual de uma trama restrita a um cenário.
Além das marcas estéticas diversas inseridas pelo cineasta, a atuação de Mélanie Laurent também sustenta o interesse pela produção, que poderia se esgotar devido às limitações espaciais e à presença de uma única personagem. Apesar de o arco dramático da protagonista envolver muito mais sentimentos negativos, a atriz encontra camadas que perpassam desespero, frustração, pessimismo, fúria, obstinação e desalento de quem luta pela sobrevivência contra circunstâncias desfavoráveis – assim, a experiência sensorial do público também se conecta às suas reações e aos esforços da mulher. Por outro lado, a conexão com o desenvolvimento da trama é mais problemática, já que Alexandre Aja tem dificuldades de harmonizar os subtextos sobre tecnologia e manipulação das memórias e da consciência a uma história já centrada nas sensações do isolamento – tais discussões se sucedem sem tempo suficiente para serem desenvolvidas e acabam se tornando apenas uma referência vazia a “Lunar“.
“Oxigênio” deixa a impressão de que precisaria se justificar a todo momento como se sua existência dependesse de uma densidade intelectual ou da riqueza de subtextos e analogias. Entretanto, a ficção científica recompensa mais quando o aspecto sensorial ocupa o primeiro plano, por exemplo no clímax que conclui a jornada de Elizabeth para compreender e conseguir fazer o necessário para sobreviver. Desse modo, é curioso notar como o desfecho é um contraponto à abertura no que se refere à relação entre a personagem principal e a câmara criogênica, estabelecendo com eficiência os riscos do sacrifício final. Consequentemente, o próprio filme sacrifica, de certa forma, o potencial da experiência sensorial em nome de uma suposta profundidade temática, o que se reflete em um plano final menos catártico do que se pretendia.
Um resultado de todos os filmes que já viu.