“A ARTISTA E O LADRÃO” – A arte da reconstrução pessoal
Barb é uma artista plástica que precisou de um evento, em tese, traumático, para enxergar seus próprios problemas e reforçar sua visão compassiva do ser humano. Propondo-se a compreender e conhecer o outro, encontrou na empatia uma ferramenta transformadora interna e externa. A ARTISTA E O LADRÃO é mais que um filme, é uma lição sobre a vida, sobre a natureza humana e sobre a força da arte.
A artista do título é Barb, que tem suas principais obras expostas em uma galeria até ocorrer um furto no local, de onde os quadros são subtraídos. Após serem identificados os responsáveis, ela se frustra porque as obras não são encontradas. Entretanto, no julgamento de um deles – o ladrão, Bertil -, Barb é tomada por um sentimento inexplicável que a faz se aproximar dele, mesmo sem saber o que pode acontecer com tal aproximação.
A questão central do filme não é tanto o que acontece depois de Barb ir atrás de Bertil para conversar, mas como e por que isso ocorre. A motivação (o sentimento inexplicável) é pouco inteligível até mesmo para a própria artista, que não sabe afirmar com certeza o que chamou sua atenção naquele homem que estava sendo julgado criminalmente por um fato cometido contra ela. É possível detectar um interesse estético (razão pela qual ela o quer como modelo), que, contudo, não se confunde com atração física. Existe ainda uma curiosidade factual: por mais paradoxal que pareça, antes de saber por que deseja conhecer Bertil, Barb quer saber por que ele praticou o delito. Não há como sintetizar adequadamente tudo isso, salvo, talvez, por palavras abertas como epifania, lampejo ou insight – de todo modo, sempre em sentido artístico.
A metalinguagem de “A artista e o ladrão” é um componente importante e valorizado pelo diretor Benjamin Ree. A mise en scène revela sensibilidade rara, seja ao enaltecer as idiossincrasias das personagens, seja no humor leve que atenua o drama pesado da vida daquelas pessoas. O plano-detalhe da mão da namorada de Bertil é relevante porque mostra que, em meio a tantas tatuagens, uma delas, visível melhor com o punho fechado (posição agressiva), é da palavra “amor”. O clímax dramático extrai seu drama de si mesmo, o que tornam suficientes fotografias de um acidente, aparecendo em flashes e narrados em voice over. Ainda, um dos momentos mais doces de humor envolve uma música da cantora Shakira. Nos três casos (tatuagem, fotografia e música), há diferentes manifestações artísticas que constituem exemplos menores da metalinguagem do longa.
O exemplo maior não poderia deixar de ser a obra-prima de Barb, que é furtada por Bertil, mas que se torna, justamente pelo furto, um elo entre os dois do qual decorre uma nova arte. Curiosa, ela parece estar entrevistando-o no segundo encontro entre eles (o primeiro foi no julgamento), mas esse fator é fundamental para permitir que ela o compreenda minimamente. Se é verdade, como ele afirma, que não é possível entender um viciado acordado há quatro dias à base de entorpecentes, não é menos verdade que é possível entender como ele se tornou alguém em tal condição. A busca de Barb, assim, deixa de ser o motivo daquele crime específico e passa a ser as causas que levaram Bertil à criminalidade e às drogas.
Mais que uma busca, na verdade ela se propõe a uma empreitada obsessiva que contraditoriamente lhe permite extrair frutos positivos. O primeiro deles se refere a Bertil (Karl Bertil-Nordland): Barb o vê de maneira sincera, bondosa e empática, três qualidades que ele pouco encontrou em sua trajetória. Na visão dela, ele grita por atenção, fazendo o que faz para ser visto. Por esse motivo, quando ela lhe dá a almejada visibilidade, ele se emociona e se torna capaz de melhorar como pessoa (leia-se, ter uma vida socialmente adequada e feliz). Eles se tornam mais que amigos, mas cúmplices de uma mudança que, no fundo, é promovida desde o começo pela arte. Bertil muda no visual (abandona as camisetas em que está escrito “o crime compensa” e adota um visual viking, com coque e barba longa), porém sua grande mudança é de mentalidade e modo de vida.
Embalada pela linda composição de Uno Helmersson, “Nailing painting”, a impecável montagem de Robert Stengård faz com que Barb (Barbora Kysilkova) pareça dançar ao invés de pintar em frente a uma tela. O branco da tela é preenchido aos saltos por cortes secos, da mesma forma que ela se movimenta de maneira terna enquanto seduz com a sua arte (seus quadros são de uma beleza indescritível). A ternura, todavia, não condiz com seu passado traumático, que é revelado no filme por Bertil. A obsessão por Bertil a torna capaz de enxergar uma atração por aquilo que é aparentemente firme, mas quebradiço por dentro. Ela admite ser obcecada por mãos e dá atenção especial à cicatriz encontrada em uma das mãos de seu modelo, o que é sintomático em relação à sua psique.
O filme perde força ao dar espaço demasiado às subtramas da dupla (especialmente de Barb), separando Barb de Bertil em determinado momento e ignorando, assim, que a pujança do filme está na reunião dos dois. Mesmo sendo uma verticalização maior na vida da artista, saber que ela tem problemas comuns a quaisquer outras pessoas não é nada surpreendente. Pelo contrário, é mais atrativo o arco narrativo pessoal de Bertil. Apesar do desvio, “A artista e o ladrão” é um documentário tocante de uma experiência quase inacreditável. Um evento que tinha tudo para causar infelicidade aos envolvidos é ressignificado: através da arte e aliado a sentimentos de compaixão e empatia, torna-se elemento catalisador de benéficas reconstruções pessoais.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.