“ESTADOS UNIDOS VS. BILLIE HOLIDAY” – Homenageada
Mesmo usando uma cartilha certeira, ESTADOS UNIDOS VS. BILLIE HOLIDAY não conseguiu o sucesso que esperava nas premiações da indústria. Na principal delas, o Oscar, obteve apenas a indicação (sem vitória) na categoria de melhor atriz, nada mais. O que lhe faltou para atingir o status de cinebiografias como “A teoria de tudo”, “Lincoln” ou “Milk”?
Nova Iorque, 1957: já famosa e consagrada, Billie Holiday está prestes a conceder uma entrevista a um importante radialista. Quando sua canção “Strange fruit” entra na conversa, ela se recorda da perseguição que sofreu pelo Departamento Federal de Narcóticos, promovida por um agente com quem teve uma complicada relação.
“Strange fruit” é uma música intensa que, nas palavras da cantora (no filme), fala de direitos civis. Sua trajetória, de acordo com o longa, é sobre sofrimento e sobre direitos, assuntos abordados à exaustão na indústria cinematográfica. Para se diferenciar, seria necessário algum fator de destaque, o que, contudo, não aparece na película.
Baseado no livro de Johann Hari, o roteiro de Suzan-Lori Parks é muito fraco. Do ponto de vista estrutural, padece de males inexplicáveis, como a própria entrevista que é a mola propulsora da narrativa. Em poucas palavras, trata-se de uma entrevista completamente inútil, pois não haveria prejuízo algum se ela fosse excluída da obra. Em tese, o mecanismo facilita a narração ao pontuar a estória, porém aqui não há utilidade alguma.
Não é esse, contudo, o único defeito do script. Trevante Rhodes se esforça, mas não é possível convencer com uma personagem tão inconsistente quanto Jimmy Fletcher (ao menos da forma como retratada no filme, é claro). A título meramente exemplificativo, basta perceber que sua mãe percebe sua instrumentalização, algo que ele, ingenuamente, não consegue enxergar, a despeito do cenário óbvio e de estar diretamente envolvido. O longa tem pouco mais de duas horas e, ainda assim, é incapaz de dar profundidade a alguma personagem coadjuvante, mostrando as autoridades como imotivadamente mal-intencionadas. Não basta mostrar Harry Anslinger (Garrett Hedlund) afirmando que “jazz é coisa do demônio”, é preciso escancarar que as más intenções têm por fundamento o racismo – para isso, Anslinger não pode ser um vilão unidimensional obcecado pela cantora.
Andra Day se desnuda (literalmente) para o papel para o qual emagreceu (e parece fazer questão de mostrar), de fato seu empenho é notório. A personagem é evidentemente forte e complexa, mas isso não está na obra; o que está lá é uma cantora que, em seu primeiro trabalho como atriz protagonista, aproximou assustadoramente o seu timbre ao de Lady Day e se mostrou disposta ao máximo para transmitir a dor de Billie Holiday. É surpreendente que Andra tenha conseguido cantar as canções de Billie com tamanha semelhança vocal, o que reforça a sua admiração pela homenageada (presente inclusive no “Day” do nome artístico). Porém, o texto do filme é raso em demasia para fazer com que a origem de seus traumas e seus sintomas se tornem perceptíveis para além do que é expressamente dito (show, don’t tell!).
A direção de Lee Daniels não é completamente desprezível, apenas frágil. Desperdiçando elementos simbólicos interessantes (a associação entre o uso de heroína e a religiosidade poderia ser melhor explorada para além de uma toalha colocada por cima da vela que serve aos dois propósitos), existem algumas epifanias, que, no entanto, empalidecem nos equívocos seriais. A sequência sobre a infância de Lady Day é boa, mas insuficiente, isolada, para jogá-la ao mundo das drogas. A cena de sexo após a ligação de Jimmy é bastante ilustrativa, mas não tem o lirismo suficiente para conectar o simbolismo ao passado traumático. A sequência envolvendo a Klan usa bem o cenário, mas em si mesma ela não tem função narrativa, existe apenas para chocar. É o mesmo que ocorre quando há violência, cujo propósito é o choque, não o drama.
O filme tem ainda um grave problema de ritmo, revelando-se anticlimático na progressão narrativa (a piada após o cancelamento do show, além do péssimo gosto, torna a vergonha de Jimmy simplesmente ridícula). A montagem é frenética e viciada em transições com fusão, algo que, na melhor das hipóteses, reduz o impacto das músicas em que a protagonista surge cantando. Com “All of me”, a apresentação é camuflada pelos efeitos (da fusão) e pelos diálogos entrecortados; com “Solitude”, a seriedade quase fúnebre da canção sofre uma erosão quando a cantora aparece em cima do vaso sanitário.
“Estados Unidos vs. Billie Holiday” segue a cartilha das biopics, porém sem profundidade alguma e com diversos equívocos técnicos. O resultado é muito aquém de uma cantora que foi símbolo de uma luta e vítima de um mal que assola até mesmo a sociedade hodierna. O filme não merece prêmios, Billie Holiday, por outro lado, merece todas as homenagens que recebe.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.