“Amor e Monstros” – Jornada humanista de uma distopia
Em uma camada superficial, AMOR E MONSTROS tem uma estrutura bastante convencional de jornada do herói. Joel Dawson é o típico protagonista que reluta em aceitar uma missão, embarca em seu propósito após alguns chamados à aventura, enfrenta desafios que o transformam e retorna ao seu mundo inicial portando um conhecimento a ser partilhado com mais pessoas. Quem nunca viu uma história nesses moldes e procurar por algo um pouco mais original? O diretor Michael Matthews sabe disso e por essa razão convida o público a experimentar não apenas a jornada do herói, mas também a da própria distopia no cinema.
Como muitas outras produções distópicas, nesse filme o apocalipse chegou. A tentativa de destruir um asteroide, prestes a se chocar com a Terra, levou os animais a se tornarem criaturas gigantes e assumirem o controle do planeta. Então, a humanidade se refugia em abrigos subterrâneos, inclusive o jovem Joel. No dia em que consegue se comunicar por rádio com Aimee, sua namorada há sete anos, a paixão ressurge e ele decide subir a superfície e encontrar a colônia onde ela está.
A partir da caracterização do universo apocalíptico e de seu estado sete anos após a devastação de 95/ da população mundial, a jornada do herói toma forma: Joel vive em uma colônia com outras pessoas que o ajudaram a sobreviver; no subterrâneo, convivem juntos, cabendo ao jovem cuidar do rádio e da alimentação enquanto os outros protegem o local da invasão dos monstros; nesse cenário, o personagem principal é tratado como alguém fraco, incapaz de enfrentar as criaturas por medo; assim, a decisão de procurar Aimee parece uma loucura fadada à morte. Não é nenhuma surpresa supor que essa travessia o fará aprender valiosas lições de sobrevivência e não mais ser impotente, mas o que poderia ser simplesmente previsível ganha um aspecto atrativo e envolvente graças a tudo que cerca o protagonista.
Dylan O’Brien tem carisma suficiente para comandar a missão, ser os olhos do espectador em um mundo desconhecido e prender a atenção em cenas em que está sozinho ou contracenando com o cão Boy. Isso acontece porque o ator se adequa as exigências físicas dos momentos de ação e, principalmente, se sente à vontade com o humor de muitas situações – graças a ele, as piadas do roteiro sobre sua dificuldade de lidar com os monstros, as suspeitas de que ele saiu da colônia por roubar comida e os contratempos encontrados em seu deslocamento e funcionam. Mesmo na abertura quando é apresentado o universo diegético, a narração em voice over e a estilização da imagens injetam humor e humanismo a uma jornada que não se desenvolve como a maioria das distopias: ao invés da seriedade trágica e da busca por algo para lidar com o apocalipse, há a leveza da procura juvenil e ingênuo pela pessoa amada.
O amor é a mola propulsora que move a narrativa de modos variados sem soar bobo, pois aparece integrado desde o princípio. Joel se sente deslocado em sua colônia por ser o único solteiro e ver todos os colegas tendo alguém com quem se conectar (ao jovem cabe apenas as companhias da vaca Gertie e a robô sem energia Mav1s). Ao longo de seu caminho, o encontro com outros personagens ressalta o valor de conexões afetuosas: a aventura deixa de ser solitária quando encontra o cão Boy (ele próprio vinculado à antiga dona por um vestido vermelho) e passa a se comunicar com ele como se fosse um ser humano; e os vínculos se estreitam ainda mais com a companhia de Minnow e Clyde, responsáveis por ajudá-lo com lições de sobrevivência. Embora os três personagens apareçam salvando o protagonista, eles contribuem para mostrar que um mundo apocalítico pode preservar afeto e humanidade (como o abraço de Minnow em Joel e o carinho de Boy).
Na sua travessia, Joel percebe que, assim como seus habitantes, o universo não é necessariamente opressor. Pode haver criaturas hostis dispostas a devorar tudo que virem pela frente, mas também outras bondosas interessadas também em sobreviver após o apocalipse (os efeitos visuais são eficiente tanto na criação de espécies gigantescas, como sapos, vermes e formigas, quanto na diferenciação do elemento que demonstra qual animal seria pacífico). Além disso, Michael Matthews utiliza algumas cenas (que poderiam ser numerosas) para trabalhar a ideia de que o cenário não seria apenas uma ameaça, dentre elas planos aéreos mostrando o avanço da vegetação, o espanto de Joel em experimentar novamente os cheiros e sons da natureza e o baile de águas vivas brilhantes e voadoras por um céu noturno enquanto toca a canção “Stand by me” – essa passagem também tem um efeito emocional significativo graças à presença de uma robô Mav1s prestes a descarregar a bateria.
Mesmo com a chegada ao seu destino, a narrativa vai além de simplesmente prosseguir com a jornada do herói sem tanta criatividade. À primeira vista, a conclusão da missão de Joel poderia ser a concretização de uma evolução dramática bem evidente (inclusive sendo cada ato representado pelos ambientes por onde o protagonista passa), na qual a busca pelo amor é ressignificada por algo que já estaria próximo a ele. Por outro lado, a obra convida o espectador a considerar o fim da aventura como uma reorientação de perspectiva para as distopias no cinema, semelhante à visão otimista e nada sombria de “Tomorrowland“. Nesse sentido, a jornada pode ser movida por sentimentos positivos, se desenvolver com encontros e descobertas cativantes e atingir um ápice encorajador.
O ápice de “Amor e monstros” ainda se desdobra em uma analogia para o mito da caverna de Platão. Na Antiguidade, o filósofo elaborou uma alegoria para as dualidades entre luz e escuridão, conhecimento e ignorância, aparência e realidade, que aborda a necessidade de abandonar posições cômodas permitidas pelos costumes socialmente arraigadas em favor da busca por conhecimento. Já na produção disponível na Netflix, essa clássica narrativa é apropriada para criar uma história em que os abrigos podem parecer a única caverna segura para uma realidade adversa, porém o mundo exterior pode ser vivido e desbravado a despeito das dificuldades que ele oferece.
Um resultado de todos os filmes que já viu.