“BASEADO EM FATOS REAIS” – Polissemia artística insuficiente
A análise de BASEADO EM FATOS REAIS parte da premissa segundo a qual o filme consiste em uma obra polissêmica. Ainda que com esforço hercúleo, é difícil chegar a uma conclusão peremptória sobre seu discurso real. É essa, pois, a beleza máxima da arte – que, contudo, pode não bastar.
Seu enredo é singelo: Elle conhece a renomada escritora Delphine, de quem se aproxima e inicia um relacionamento de amizade. A amizade, porém, se transforma em uma obsessão violenta. Mas há muito mais do que essa sinopse pode aparentar.
Em uma primeira camada, o roteiro, escrito por Roman Polanski* (que também dirigiu a película) e Olivier Assayas é o retrato de uma romântica (no sentido artístico) e abusiva amizade, em que Elle nutre uma admiração doentia por Delphine (nos mesmos moldes da Annie Wilkes interpretada por Kathy Bates em “Louca obsessão”). Subliminarmente, são insinuadas a homoafetividade (inclusive em alguns planos bem sugestivos) e as consequências da fragilidade emocional. A síntese do longa, porém, é muito mais profunda, sugerindo alucinações sequenciais por parte de Delphine (e a “dica” para essa interpretação reside na personagem conhecida como Kiki).
Metalinguístico – já que o script é baseado no romance homônimo de Delphine de Vigan -, o texto é um pouco rocambolesco na dubiedade do traço que distingue ficção da realidade, bem como ao mencionar a dificuldade de um escritor na ausência de inspiração (consubstanciada na tela em branco do computador, recurso eficaz, mas não original). Ainda assim, são mencionados tanto temas amplos e perenes (como a solidão e a liberdade) quanto matérias mais específicas e bem atuais (como a difamação nas redes sociais e, indo mais longe, fake news). Embora existam elementos de somenos importância no roteiro – por exemplo, as cadernetas de Delphine, cuja função apenas parece ser relevante – e um desfecho vago e niilista, suas dubiedades e a inversão narrativa (um plot point em que a relação entre Elle e Delphine se inverte) demonstram uma inteligência contida.
A protagonista Delphine é interpretada por Emmanuelle Seigner, muito mais discreta do que de costume (como em “A pele de Vênus”) e que não satisfaz com uma expressão exageradamente blasé. Não se olvida a personalidade introvertida da personagem, mas há uma amplificação dessa introspecção. Seu oposto é a Elle de Eva Green, que deveria ter reduzido a voracidade da personagem – por exemplo, o olhar penetrante direcionado a Delphine é caricato e desnecessário (ao menos naquela intensidade). A conclusão lógica é que Polanski não as conduziu bem.
Entretanto, em outros quesitos, o diretor não decepciona. A câmera procura acompanhar a movimentação física dos artistas (oposto do que costuma fazer Woody Allen, que prefere que os artistas se movimentem de acordo com o que a câmera indicar), o que fica ainda mais belo quando o cenário é esteticamente aprazível – por exemplo, na cena em que Delphine conversa com seu marido enquanto ambos caminham, tendo um formoso cenário bucólico ao fundo. A edição de som é muito boa (tendo ápice na entrevista da protagonista em sua casa, quando é aberta uma janela, metáfora do seu raro momento de liberdade após a chegada de Elle), a tímida trilha sonora não aproveita o enorme talento de Alexandre Desplat e a fotografia vai se tornando, coerentemente, mais gelada e escurecida (com filmagens inclusive na chuva, que remete à tristeza).
Polanski progressivamente cria uma identidade entre Elle e Delphine (o que corrobora uma das interpretações): do compartilhamento de um remédio à assunção da conta de e-mail, elas se associam também no figurino – a primeira vai adotando as cores dessaturadas do vestuário da segunda (além das botas, o que o diretor didaticamente mostra ao espectador), além disso, Delphine aparece com um cachecol cuja cor é semelhante à écharpe que ela mesma deu para a amiga. Mesmo quando Polanski viola a regra dos cento e oitenta graus, o faz deliberadamente, sem prejudicar a compreensão da mise en scène, deixando claro que se trata de um plot point significativo.
“Baseado em fatos reais” não entra no rol dos melhores filmes de Roman Polanski. O destaque da película é a possibilidade de interpretações diferentes, o que demonstra claramente que o longa não é simplista. Porém, há que se reconhecer que essa possibilidade não é um valor suficiente para tornar a obra marcante. Tal característica lhe falta para chegar a um nível superior.
* Para fins da presente crítica, foram ignoradas as polêmicas referentes à vida pessoal do cineasta, separando a sua pessoa do seu trabalho.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.