“OS PEQUENOS VESTÍGIOS” – Enterrar o roteirista
Depois de um hiato de nove anos sem escrever um roteiro, John Lee Hancock volta com um elenco oscarizado – o que nem sempre significa qualidade nas atuações – e no trabalho de direção ao qual se dedicou nesse hiato. O resultado é que OS PEQUENOS VESTÍGIOS tem um elenco indiferente, uma direção razoável e um roteiro fraquíssimo.
O experiente policial Joe “Deke” Deacon é enviado por seu capitão, do condado de Kern a Los Angeles, onde já trabalhou, para recolher provas de um caso. No local, ele é convidado pelo detetive Jim Baxter, que conhece a sua fama, a participar de uma diligência envolvendo um possível assassino serial. O passado obscuro e a instabilidade emocional de Deke pode atrapalhar a carreira promissora de Jim, porém os dois se unem para tentar resolver o caso.
No papel de Deke está Denzel Washington; no de Jim, Rami Malek; no de Albert (suspeito de ser o serial killer), Jared Leto. São três atores com currículo, têm experiência, mas isso não faz diferença alguma em razão da incapacidade do roteiro em criar personalidades sólidas. Apesar de Deke aparecer como o “cara legal” (carinhoso com um cachorro, obediente com o chefe) dos papéis habituais de Washington, essa é uma óbvia cortina de fumaça para um passado ambíguo. O policial tem um currículo de respeito, porém traumas do passado o assombram o tempo todo (gerando cenas clichês envolvendo pessoas mortas). O passado de Deke pode ser interessante, principalmente no que envolve Flo (Michael Hyatt) e Marsha (Judith Scott), porém é revelado em fragmentos que mais explicam eventos pretéritos que consolidam a personalidade da personagem.
Diversamente, Jim surge como arrogante e antipático, revelando-se inconsistente ao saber que o forasteiro desconhecido é o famoso Deke. Para alguém que já está em boa condição (em termos de reputação na polícia e na mídia) e aparece bastante seguro de si na profissão, é no mínimo contraditória a postura em relação a Deke após saber sua identidade. O trabalho de Malek não colabora para tornar a personagem instigante, sobretudo por sua estupidez evidente (o que fica escancarado no ato final). Enquanto Washington não compromete e Malek não vai bem, Leto, por interpretar de maneira contida o seu papel – com alguns deslizes no sarcasmo e um trabalho de voz de poucas nuances -, é quase um destaque positivo. Ainda assim, certamente não é o elenco que faz a diferença, para bem ou para mal, em relação ao filme.
Também não é na direção que John Lee Hancock estraga sua obra. Desde 2009, com “Um sonho possível”, o cineasta não trabalhava no roteiro e na direção de um longa. No período, ele chegou a dirigir bons filmes, como “Fome de poder” (2016), retornando à dupla função com “Os pequenos vestígios”, reforçando que sua deficiência está no trabalho como roteirista. A mise en scène, ainda que não esteja na excelência, talvez seja o que filme tem de melhor. No design de som, as batidas no estilo anos 1990 são coerentes (já que condizentes com a época em que a estória se passa) e há pelo menos um diálogo provocativo entre a trilha e a narrativa (quando toca “At last”, sugerindo que Deke aguardava ansiosamente pelo que ocorre, empolgando-se com a oportunidade). Imageticamente, o figurino de Albert, sem grande criatividade, é aceitável (sempre de cinza, o que representa a dubiedade da personagem), enquanto a cor verde do design de produção (nas paredes e na iluminação do hotel, no carro de Albert) é a representação simbólica da morte, assunto que permeia a trama.
É justamente nesse ponto que o filme é inábil. O roteiro de Hancock é fraquíssimo por dois motivos. O primeiro é por alguns clichês comuns nos filmes policiais, como as coincidências pouco críveis (Tina vê Albert na hora certa e do ângulo certo!) e a falta de sagacidade dos agentes da lei quando comparados ao investigado (como Deke pode ter sido o único a pensar no observatório em frente ao prédio? Por que Jim não falou da presilha para Deke antes de entrar na casa?). Nesse último caso, é quase risível a lentidão da dupla principal: Deke é completamente despido de rapidez (basta ver como se comporta na casa de Albert); Jim leva um nó de Albert quando este vai a um bar. Aliás, Albert faz de Jim uma marionete inacreditável no ato final, que é quando a narrativa desanda completamente.
O segundo motivo que revela a fragilidade do roteiro repousa em suas pequenas inconsistências (como pode um policial de férias e de outro condado participar de um interrogatório? Qual a real necessidade do red herring da carne assada diante daquele final?). No clímax, a montagem é eficaz dividindo as três personagens, porém o longa sai dos trilhos por completo a partir de então, tendo um desfecho frustrante demais até mesmo para uma proposta ultrapassada como é a de “Os pequenos vestígios”. Melhor que John Lee Hancock insista apenas na direção e deixe o trabalho como roteirista enterrado no passado.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.