“A LIGAÇÃO” – O fetiche moralista com o tempo
Filmes com temática de viagens ou mudanças no tempo são tão presentes no cinema que carece qualquer tipo de exemplificação. Há um fetiche com a ideia de voltar atrás no tempo, ou ir adiante, e mudar o rumo dos acontecimentos. Esse fetiche tem um poderoso fundo moral, por vezes normatizante e edificante, mas às vezes ameaçador e desestruturante. Os caprichos do tempo possuem grande apelo mas escondem perigos, e isso vale para também para os realizadores. O sul-coreano A LIGAÇÃO, de Lee Chung-hyun, parece ter compreendido a tarefa, ao se embrenhar em um labirinto moral vertiginoso com suas próprias regras, que cativa e entretém mesmo sem se aprofundar muito em questões existenciais densas.
A trama conta a história da jovem de 28 anos Kim Seo-yeon, que se hospeda na casa da infância enquanto visita sua mãe no hospital. Após perder o celular no trem, Seo-yeon encontra um telefone sem fio pelo qual começa a receber chamadas de uma mulher da mesma idade chamada Oh Young-sook. Nas conversas, ela alega estar sendo torturada pela mãe. Seo-yeon descobre, no entanto, que as duas estão na mesma casa, com uma diferença de 20 anos: Young-sook em 1999 e Seo-yeon em 2019. Munidas de um poder até então inimaginável, as duas começam a se ajudar, mudando o presente e o futuro. Mas a conta da perspicácia acaba custando caro, principalmente para Seo-yeon, vítima dos desígnios da desiquilibrada Young-sook.
O filme, escrito e dirigido por Lee Chung-hyun, é uma adaptação de uma coprodução entre Reino Unido e Porto Rico: “O Chamado” (2011), de Matthew Parkhill, Em seu primeiro longa, o jovem diretor se propôs criar um pequeno universo que está sempre se reescrevendo, e que portanto nunca é fixo, que gira em torno de questões do âmbito familiar, principalmente no que concerne à maternidade.
Lee cria um suspense com camadas móveis que se revelam de forma temporária atingindo o seu pico de clímax sob a forma horrífica. A relação com a mãe é o motor central da trama, assim como a construção da identidade das duas jovens, em meio a desejos e conflitos. Seo-yeon culpa sua mãe hospitalizada pela morte do pai em um incêndio. Já Young-sook é constantemente torturada pela sua, uma espécie de “curandeira” que acredita que tenha algo errado com sua filha adotiva. É a amizade e auxílio mútuo entre as duas que gera uma espiral de caos na qual cada decisão é irrevogável, e torções na trama inevitáveis.
O diretor consegue, de forma sóbria, criar regras para a mudança no tempo (presente, passado e futuro) que são compreensivas e entretêm. O roteiro não se perde muito em explicar como os mecanismos acontecem, mas se preocupa com sua inteligibilidade. A identificação direta com Seo-yeon, que não é uma opção para o espectador, cria uma poderosa força gravitacional que facilita a atratividade do filme, mesmo em momentos em que a trama “engasga” um pouco, como o que ocorre no segundo ato. Há também um diálogo com os K-dramas quando o movimento horrífico é contraposto por cenas que beiram o melodrama. Os momentos em que Seo-yeon vislumbra sua vida perfeita por conta de mudanças no passado são um bom exemplo disso.
A arte do filme se destaca não apenas por criar camadas entre possibilidades de existência mas também por puro deleite estético. Cabe à direção de arte e à cinematografia contrapor os múltiplos momentos vividos pelas personagens, seus altos e baixos. O trabalho de reorganização temporal estética acaba sendo mais fluido, quando tanto enquadramentos quanto cortes de cabelo são evidenciados em momentos díspares.
Mesmo se baseando em um material preexistente tão distante culturalmente, Lee promoveu cores locais não apenas na ambientação do filme, puxando toda a tradição sul-coreana de suspense e horror para promover um considerável mind fucker, daqueles que lembramos por dias. Não obstante, toca em temas mais robustos como maternidade, amizade e família, arranha a moralidade e destrói o culto à felicidade plena, tão amplamente pregado. A jornada de Seo-yeon e Young-sook talvez nunca tenha fim no continuum de tempo criado pelo filme, e essa talvez seja sua maior contribuição.
Doutora em zumbis. Péssima em escrever bios.