“UMA QUESTÃO PESSOAL” – O perigo da intromissão
* Filme assistido na plataforma da Supo Mungam Films (clique aqui para acessar a página da Supo Mungam Plus).
Mesmo quando tem boas intenções, uma intromissão é sempre uma intromissão. Em UMA QUESTÃO PESSOAL, o protagonista está se intrometendo – ainda que, em tese, sem malícia – na vida de dois amigos, arriscando a própria vida em plena Segunda Guerra.
Enfrentando o fascismo, Milton luta pela Resistência Italiana. Em sua jornada, ele reencontra a casa onde morava Fulvia, uma jovem por quem ele era apaixonado. Quando descobre que ela era mais envolvida com Giorgio – o terceiro amigo do grupo – do que ele imaginava, Milton decide ir atrás dele, que está com a Resistência em outro local.
A nostalgia é a catapulta do roteiro dos irmãos Paolo e Vittorio Taviani. Em meio à intensa neblina colocada pelo diretor Paolo Taviani, dando uma aura misteriosa à trama, Milton revê a casa de onde tem memórias doces. Ficam estabelecidos, logo nos primeiros minutos, algumas das premissas fundamentais do longa: Milton é o protagonista, apaixonado por Fulvia e saudoso dos bons momentos que viveram.
O texto “brinca” com conceitos narratológicos ao encaixar o ponto de vista da narração – exceto em uma sequência fundamental – ao lado do protagonista, o que significaria, em tese, uma narrativa épica. Entretanto, considerando o principal ponto de foco da narração, a narrativa seria dramática. No aspecto temporal, igualmente, prevalece o dramático: o passado (a relação do trio) é a motivação do herói, o presente é a ação do presente diegético e o futuro é o objetivo de Milton. A narração seria dramática também porque percebe e narra as ações exteriorizadas das personagens, porém há cenas de subjetividade mental em que é evidente a narração lírica.
As observações conceituais acima apontam por uma riqueza que dominou a profícua carreira dos irmãos Taviani (por exemplo, ganharam a Palma de Ouro, por “Bom dia, Babilônia”, e o Urso de Ouro, por “César deve morrer”). Sua habilidade é perceptível também na escolha de Luca Marinelli para o papel de Milton, um ator pouco conhecido fora da Itália antes do longa, mas que reforçou o talento em “Martin Eden” (2019) a ponto de começar a ganhar espaço fora do Velho Continente (com “The old guard”, de 2020 – clique aqui para ler a nossa crítica). Na produção de 2017, Marinelli transmite em especial pelo olhar o espírito de um rapaz impávido em relação ao futuro e encantado em relação ao passado.
“Uma questão privada” é um drama de época com um sólido fundo de romance. Ainda jovem, Milton olha Fulvia (Valentina Bellè) por baixo da saia quando ela sobe em uma árvore tentando disfarçar, é uma paixão juvenil e platônica pela “resplandescente” Fulvia. Tudo leva a crer que Giorgio (Lorenzo Richelmy) teve mais envolvimento com a moça, pairando uma dúvida sufocante o suficiente para que o protagonista vá atrás do amigo. Uma sinopse já tem essa informação, e o desenvolvimento da trama não vai muito além disso. A preocupação do longa não é dar respostas à pergunta preliminar, mas ilustrar lateralmente o contexto em que Milton se encontra.
Há muita sensibilidade na direção, que não espetaculariza a guerra em momento algum. Pelo contrário, delicadamente faz com que um abraço silencioso e escondido soe como um oásis no deserto de sangue – um sangue vermelho da cor da blusa de Milton, que quer abraçar a paz representada pelo branco do vestido de Fulvia. A cena mais violenta é a que uma menina bebe um copo de água: a violência não é gráfica, mas simbólica. No som, os tiros calam a bateria simulada por um homem que parece ter perdido a lucidez com a mesma força com que irrompem um silêncio – literal e metaforicamente – sepulcral. Os cenários bucólicos podem ser bonitos, mas o vazio populacional é o reflexo translúcido da opressão fascista.
A câmera seleciona cirurgicamente o que mostrar, como ao surpreender o espectador com Milton atrás de um matagal, ou o que não mostrar, no caso do rosto do capturado. Adotando, como mencionado, um ponto de vista ao lado do protagonista, é isso que permite o encaixe de cenas em subjetividade mental (na maioria, flashbacks). Trata-se, de fato, de um encaixe, aproveitando como conectivos, na maioria das vezes, objetos do presente que estiveram no pretérito diegético, como o toca-discos, a árvore e o cigarro. Faz sentido, já que o passado também pode ser ressignificado.
Tristemente para o herói, a ressignificação do passado eleva a situação trágica em que ele se encontra. Pior, por opção própria, ao se intrometer no suposto romance entre Fulvia e Giorgio. Sua tarefa não é enterrar o que já aconteceu, até porque a idolatria ao que ocorreu antes de seu ingresso na Resistência não é sequer verdadeira (Fulvia nunca pareceu tão interessada nele quanto em Giorgio). O aprendizado que se impõe a Milton é ultrapassar a questão pessoal alheia para ter suas próprias questões pessoais.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.