“MALCOLM E MARIE” – Encontros e desencontros para a arte
De um ponto de vista dramático, MALCOLM E MARIE pode remeter a “Foi apenas um sonho“, “Um limite entre nós” e “História de um casamento“. Em comum, todos eles se estruturam em torno de acaloradas discussões entre casais desencadeadas pela explosão de angústias acumuladas. Apesar das similaridades explícitas, são as diferenças do novo projeto original Netflix que, para o bem e para o mal, marcam o drama idealizado por Sam Levinson.
Malcolm é um diretor estreante que volta para casa com sua namorada após a primeira exibição de seu filme. Marie é uma atriz e não parece tão empolgada quanto ele, fazendo seus silêncios contrastarem com a vibração eufórica do namorado. À medida que a madrugada avança, as posturas diferentes dos protagonistas impulsionam desentendimentos e tensões cada vez mais intensos que escancaram fissuras no relacionamento.
Assim como as três produções citadas, este drama possui um estilo teatral por se passar em um único cenário com apenas dois personagens. O que poderia ser conflitante com a narrativa cinematográfica é resolvido com decisões formais expressivas do diretor Sam Levinson: as composições dos planos variam entre enquadramentos abertos e distantes e outros fechados bem próximos ao casal. No primeiro caso, o espectador é colocado como um observador das conversas como acontece em uma das sequências iniciais, na qual a câmera do lado de fora da casa se move em travelling para enquadrar Malcolm dançando de alegria e Marie fumando pensativa; no segundo, o público se sente um dos personagens dentro da discussão como ocorre em muitos momentos na cozinha, quando a câmera percorre os corpos dos atores ou assume o ponto de vista de um deles.
Com esses enquadramentos mais próximos, cria-se uma intimidade com os personagens de modo a fazer parecer que a realidade de um casal se descortina na tela. Por conta disso, a sensação deixada pela narrativa é a de um turbilhão de emoções desencadeadas pela relação de Malcolm e Marie, cabendo ao espectador se sentir constrangido de assistir aos ataques impensáveis de um contra o outro quando se está descontrolado. Nesse sentido, algo dito (ou não) em um discurso de agradecimento do cineasta culmina em atritos que abarcam várias questões: expectativas ou frustrações profissionais de um artista em ascensão e de uma atriz insegura; ressentimentos mal resolvidos do início do namoro; visões de um sobre o outro quanto às suas individualidades; entendimentos sobre a complementariedade de um em relação ao outro; e demonstrações de carinho por alguém diferente de si mesmo.
O efeito da decupagem íntima favorece a dupla de atores, que se apropria do roteiro para ampliar o envolvimento emocional com o casal. A proximidade da câmera ressalta a performance de Zendaya construindo uma mulher complexa, ao transitar entre a clareza de seus sentimentos e a insegurança em face de suas possibilidades no mundo – a cada momento silencioso, a atriz potencializa suas contradições de forma ainda mais significativa do que nas cenas em que explode. O mesmo estilo de enquadramento permite a John David Washington criar Malcolm como um homem eufórico dentro de seu narcisismo, ao se descontrolar diante de fatos sempre relacionados a si mesmo ou à sua profissão – a sequência em que come macarrão demonstra o quanto é centrado em seu egocentrismo agressivo, porém dependente da namorada.
Em certa medida, o roteiro assinado por Sam Levinson também busca momentos íntimos dos protagonistas para tornarem os laços românticos palpáveis. São assim os instantes em que Marie fuma em silêncio fora da residência e Malcolm reage intensamente às percepções dos críticos em relação ao seu filme. Contudo, o que poderia ser expressivo através do poder específico dessas cenas se reduz diante dos problemas de repetição da estrutura narrativa. Nos primeiros momentos do filme, quando os namorados parecem se entender, algo é desenterrado que os faz brigar novamente; mais adiante, as discussões levam um deles a esbravejar ataques verbais contra o outro, que se retrai e não responde; e por fim, quem antes estava silencioso, aproveita a introspecção para contra-atacar em uma discussão seguinte. Logo, a dinâmica entre os personagens fica encapsulada apenas dentro desses moldes previsíveis.
Já nas passagens em que a decupagem assume uma perspectiva distanciada de observador, os efeitos dramáticos são instáveis. O interesse geral da narrativa seria equilibrar a sensação de que aquele relacionamento poderia ser real e a percepção de que a relação seria fruto da criação fictícia de um artista (neste ponto, os planos mais abertos encorajam a contemplação do material encenado). Por um lado, essa escolha se efetiva quando a estética se une à trama para mostrar como a produção cinematográfica interfere na vida e na personalidade dos personagens (a insegurança de Marie para ser atriz e a autoconfiança de Malcolm sobre seu talento dizem muito a respeito de seus conflitos internos). Por outro lado, há momentos em que referências à arte e ao cinema ultrapassam os protagonistas e simplesmente parecem dar vazão a desabafos de Sam Levinson contendo suas opiniões sobre a riqueza da arte e o trabalho dos críticos.
Em comparação com os títulos semelhantes na proposta de tratar as interações de um casal em múltiplas possibilidades, “Malcolm e Marie” busca incorporar novos elementos a uma construção dramática já feita. Portanto, é curioso que o drama se saia melhor na abordagem do relacionamento amoroso e nas particularidades dos personagens e não tanto no entrelaçamento entre ficção e romance. Enquanto a obra mergulha no íntimo de figuras complexas que se complementam e se afastam contraditoriamente, o público pode se sentir mais envolvido com as situações e dilemas encenados. E, quanto as pretensões do cineasta roteirista extrapolam para objetivos mais ambiciosos, a narrativa parece esquecer a força “real” dos personagens para se desviar para o trabalho “ficcional” do artista.
Um resultado de todos os filmes que já viu.