“A ASSISTENTE” – Me Too contra o status quo
O mundo dos bastidores das produções audiovisuais tem um lado muito podre. Com o movimento Me Too, a preocupação com agressões e assédios sexuais no ambiente de trabalho ganhou espaço na indústria, que passou a banir diversas figuras de alto calibre. Em A ASSISTENTE, pode-se ver um pouco do que sofrem as vítimas de tais abusos.
Jane sonha em ser produtora de cinema. Para isso, seu atual trabalho como assistente de um magnata do audiovisual pode ser uma excelente porta de entrada. Porém, à medida que desempenha suas atividades, percebe que atos abusivos ocorrem ao seu redor, de conhecimento geral, mas sem ninguém fazendo algo a respeito.
Nos minimalistas minutos iniciais do filme, percebe-se um trabalho de foley provocativo. Os sons diegéticos são colocados em alto volume pela mixagem: Jane caminhando nos corredores de seu trabalho, jogando papéis em sua mesa, apertando o botão do interruptor e até mesmo o ruído da lâmpada acesa. São diversos os ruídos de embrulhamento e amassamento (papel, sacola etc.), algo provavelmente atraente para uma pessoa com ASMR. Para os demais, o design de som está enaltecendo a rotina entediante e desconfortável da protagonista em seu emprego. Praticamente não há músicas extradiegéticas; o silêncio é fundamental também para que Jane ouça sons abafados da sala do chefe (e especule consigo mesma o que exatamente está ocorrendo).
Muito diferente da Ruth de “Ozark”, Julia Garner faz de Jane uma moça bastante ingênua. As aspirações profissionais ficam guardadas para momentos singulares, como a leitura de um roteiro enquanto o copia. A rotina da assistente não é nada glamurosa: tirar brincos deixados no chão da sala do chefe, limpar alguma substância marcando o sofá, atender a esposa do patrão etc. No último caso, um colega se aproveita da sua passividade para atribuir-lhe a difícil tarefa. Como resultado, ela se depara com um chefe furioso, disparando contra ela ofensas de uma maneira que, por si só, é degradante – impessoal.
A impessoalidade é forte no mundo em que Jane está ingressando. Dentre os vários acertos de Kitty Green está o de não mostrar o rosto do chefe de Jane, pois ele é um arquétipo no qual vários nomes podem se encaixar (contudo, talvez fosse interessante se ele tivesse, excepcionalmente, uma interação pessoal com a protagonista, saindo da amarração narrativa). É um mundo em que tudo fica subentendido (como a mulher dos brincos, constrangida por imaginar que Jane sabe o que ocorreu, desistindo de dar uma explicação) e em que preponderam as aparências (os e-mails trocados).
Na mise en scène, a cineasta é certeira ao colocar apenas mulheres (a protagonista, em diversas cenas) na copa da empresa: o ambiente é altamente machista. Apesar de os colegas de Jane demonstrarem solidariedade (ao ajudar na redação dos e-mails e se colocarem à disposição para desabafos), ela é ignorada ao perguntar qual a graça da ligação ouvida por eles – pior, logo após levar salgados para eles (e ainda assim ouvir reclamação). Apenas ela limpa a sala do chefe; seu cereal parece infantil porque ela ainda não tem o sangue frio para lidar com tudo aquilo, o mesmo sangue frio que os colegas têm. Eles já estão “calejados”, mas a condição de gênero é fundamental para apartar Jane dos demais.
Na punch scene, cineasta e atriz são avassaladoras: Green elabora um texto eletrizante e afiado; Garner faz com que Jane tenha dificuldade em explicar a sua indignação (seu parceiro de cena também é ótimo). Não é apenas a melhor cena do filme, é uma cena soberba, que flui organicamente pelo diálogo potente, em que a palavra “vítima” é distorcida para fins perversos. Jane não precisa ser alvo direto do assédio sexual para se incomodar com ele. O problema é que, sozinha, ela certamente não tem a força para mudar o status quo.
Na fotografia cinzenta do escritório, o vestuário de Jane (blusa neutra em tom nude e calça preta), aliado ao corpo franzino da atriz, faz com que ela quase suma. Sua jaqueta é verde acinzentada, muito diferente do verde vivo da “menina” de Idaho. De fato, a protagonista some porque é atropelada pelo poder de quem dá as cartas. Se ela quiser mesmo ser uma produtora – o que seria ótimo, já que há poucas produtoras (mulheres), não é mesmo? -, talvez seja mais sábio fingir que nada censurável ocorre no local de trabalho. Saindo do filme e entrando na realidade (embora ele seja extremamente real), é bom que existam mulheres como Kitty Green, com a coragem de escancarar o problema junto com sua estrela, Julia Garner. Afinal, o Me Too ganhou força justamente com a união de esforços para enfrentar o cotidiano tóxico dos bastidores do audiovisual.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.