“LUPIN” [1ª PARTE] – Arsène redesenhado
Em 1907, o editor da revista francesa Je sais tout (eu sei tudo, em tradução livre) encomendou de Maurice Leblanc uma novela policial na qual a França tivesse seu Sherlock Holmes (ícone inglês criado por Sir Arthur Conan Doyle). Como resultado, Leblanc escreveu “Arsène Lupin, gentleman-cambrioleur” (“Arsène Lupin, ladrão-cavalheiro”, trazido ao Brasil como “Arsène Lupin, ladrão de casaca”), que se tornou uma coletânea de nove contos que inspirou diversas obras, inclusive a série original Netflix LUPIN.
Na primeira parte, de apenas cinco episódios, Assane Diop é um ladrão que usa os métodos de Lupin para ter êxito. Seu primeiro plano é roubar um colar exibido no Museu do Louvre, porém a empreitada não passa de uma vingança para limpar o nome do pai, que ele acredita ter sido injustiçado por uma família rica.
Ainda que o “ladrão-cavalheiro” não tenha a fama mundial de Sherlock Holmes, ele tem enorme representatividade na França, o que a série aproveita no primeiro episódio ao mostrar a Pirâmide do Louvre e algumas das principais obras do museu (como a “Mona Lisa”, de Da Vinci, e “A liberdade guiando o povo”, de Delacroix). No quarto episódio, uma personagem bem carismática, Fabienne (interpretada por Anne Benoît), dá novos ares à trama, com um cachorro cujo nome, J’accuse, também é forte referência francesa (é o título do artigo escrito por Émile Zola no caso Dreyfus).
Em termos de referência, todavia, a obra de Leblanc é o campo onde floresce a série Netflix. Além das referências expressas e assumidas, que fazem uma intertextualidade sagaz, a própria trama é construída pelo seu criador George Kay (e pelos demais roteiristas François Uzan, Florent Meyer, Tigran Rosine e Marie Roussin), do ponto de vista estrutural, a partir de eventos da coletânea literária. Isto é, Assane é preso como Lupin, viaja como Lupin (a narrativa de “O viajante misterioso” é quase copiada) e pretende roubar o mesmo colar da rainha que teria pertencido a Maria Antonieta.
George Kay faz uma apropriação bastante inteligente da obra clássica, atualizando-a para torná-la interessante ao público contemporâneo – que provavelmente não sabe o que é uma casaca e não se sente atraída por um protagonista vestido de cartola e monóculo -, reaproveitando a narrativa ao dialogar com ela e inserindo em Assane características de Lupin. Além da utilização dos famosos anagramas, o modus operandi de Assane é o mesmo de Lupin. Com base nisso, a narrativa coloca Youssef Guédira (Soufiane Guerrab) como um Ganimard (arqui-inimigo do herói clássico) em potencial. Contudo, Guédira é motivo de piada perante os colegas, o que fornece um pouco de humor à trama.
Não obstante, a comédia é a especialidade do talentoso Omar Sy, cuja carreira foi catapultada pelo famoso filme “Intocáveis”, de 2011, mas que em “Lupin” faz um papel mais camaleônico (inclusive literalmente). Como Assane, Sy divide-se entre o pai afetuoso, mas negligente, o ladrão eficaz (no primeiro episódio), o investigador maleável (capaz de improvisar até mesmo perante o comissário Dumont, interpretado por Vincent Garanger, na cena em que se passa por funcionário de informática) e o vingador implacável.
“Lupin” tem uma narrativa que se transforma. Subdividida sempre em duas linhas temporais (em geral, 1995 e 2020/2021), a cronologia é utilizada para explicar o enredo, que, em seu núcleo, é uma história de vingança. No primeiro episódio, o que se tem é uma história de assalto, depois, contudo, torna-se uma investigação, a partir do segundo episódio. Nesse sentido, as pistas encontradas por Assane se desdobram em um mistério instigante (os erros ortográficos do pai, o livro deixado na prisão etc.). Com mão pesada, os diretores Louis Leterrier, Marcela Said e Ludovic Bernard usam desnecessariamente lentes grande-angulares e pouca profundidade de campo, mas conseguem atribuir a atmosfera necessária para as transições do estilo da trama (ora comédia, ora suspense; ora ação, ora romance).
No quinto episódio, a narrativa se perde ao fugir da trama principal, tornando-se completamente anticlimática (que interesse há na gravidez de Claire em 2006 se agora Assane precisa fugir?). O roteiro nem sempre acerta, exigindo doses fortes de suspensão da descrença (como Juliette não reconheceu Assane no leilão? Como Assane acertou o tempo exato para interrogar Dumont e sair sem ser pego?) e deixando muitas dúvidas sobre as intenções das personagens – em especial Juliette (Clotilde Hesme), cujo arco dramático ainda está mal delineado. O subtexto de racismo é frágil (claro apenas na cena em que a dúbia Anne de Nicole Garcia se assusta ao ver o bondoso Babakar de Fargass Assandé; sugestivo na cena em que o leiloeiro fala com Assane), mas pode ser melhor aproveitado na próxima parte.
Mathieu Lamboley compõe uma trilha original em estilo de espionagem, porém “Lupin” usa com eficácia músicas não originais – destacam-se “Sway”, no segundo episódio, em que Assane deixa os policiais tontos com o seu “balanço”; e “On ne change pas”, que substitui “I can see clearly now” no quarto episódio para mostrar que Assane sabe quem Dumont realmente é. Visualmente, não há grande esmero na série, salvo na caracterização dos disfarces de Assane (mais uma vez, um dos dotes do ladrão-cavalheiro), em que o vestuário e a maquiagem colocados em Omar Sy, somados à sua interpretação, fazem com que ele seja um Arsène Lupin redesenhado. O trabalho de envelhecimento/rejuvenescimento do elenco pode não ser dos melhores (exceto quando artistas diferentes vivem o mesmo papel em momentos diferentes da vida das personagens), mas os holofotes ficam com o protagonista, ofuscando detalhes como esses. Olhando exclusivamente para esse critério (o herói), a série quase estaria à altura da obra de Maurice Leblanc, pois Assane é uma versão ótima de Arsène. O nível da produção como um todo, porém, ainda depende de algumas respostas que devem ser fornecidas na próxima parte.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.