“SOUL” – Doses de experimentalismo
Filmes experimentais podem propor novas e extremas possibilidades para a linguagem em toda sua duração ou explorar inovações pontualmente em algumas passagens. Desde seus primórdios, a Pixar experimentava em termos técnicos para o estilo das animações e temáticos para distintos perfis do público, cada vez mais se interessando por reflexões profundas. Ao longo dessa caminhada, a empresa chega a um lugar coerente com SOUL, projeto de experimentação dos temas levantados, dos aspectos estéticos criados e de sua própria trajetória criativa.
Para lidar com essas inovações, a produção acompanha Joe Gardner, um professor de banda de escola que acredita que seu propósito de vida seja tocar jazz. Apesar de ser constantemente afastado de seu sonho, insiste até conseguir uma grande chance tocando ao lado da estrela Dorothea Williams. Porém, um acidente o faz morrer e o leva para a Escola da Vida, um workshop para almas serem criadas e ganharem traços de personalidade antes de partirem para a Terra. Nesse local, conhece 22, a alma que se recusa a seguir esse percurso.
O primeiro ato se dedica à apresentação do protagonista, a sua paixão pelo jazz e as barreiras para a concretização de seu sonho. Além da falta de oportunidades para se tornar um músico ser algo implícito, a narrativa oferece momentos de caracterização direta do personagem: enquanto dá aulas para sua turma, demonstra seu amor pela música, e, quando interage com a mãe, lida com as preocupações maternas em relação à obtenção de uma carreira estável. Nesse segmento, Pete Docter e Kemp Powers testam a aparência de realismo proporcionada pelos traços gráficos da animação e a inserção de instantes pontuais de transcendência espiritual – quando Joe se entrega à performance no piano vamos junto com ele a uma viagem sensorial, uma espécie de transe em um mundo paralelo. E cabem aos arranjos de jazz de Jon Baptiste definir a trilha sonora de Trent Reznor e Atticus Ross que embalam essas passagens.
Após o acidente fatal (causado por um tipo de transe de felicidade), Joe acaba indo parar na Escola da Vida, onde o segundo ato investe em um nível de abstração maior. Assemelhando-se a “The good place” e a “Divertida mente“, o filme mostra almas infantis se preparando para seu destino no interior de algum ser humano e funcionários (conselheiros, mentores e contadores) desempenhando seus respectivos papéis no plano espiritual – a partir daí, o espectador é impactado por experiências sensoriais que vêm do experimentalismo do universo diegético em suas formas, cores, movimentos e espaços particulares. Os pavilhões – onde as almas recebem personalidades – e o Salão de Todas as Coisas – onde têm contato com potenciais propósitos de suas vidas na Terra – são ambientes criativos que fogem de lógicas racionais.
Nesse cenário abstrato também se percebem diferentes composições gráficas para as figuras ali existentes. Comparativamente, as almas são criadas por técnicas modernas de efeitos digitais em 3D e humanizadas em suas feições como em “Divertida mente“; enquanto que os conselheiros Jerry e o contador Terry são desenhados com traços tradicionais em 2D e com uma fluidez experimental. Abstração semelhante reveste os espaços que constituem o universo em questão, tanto na concepção estética (a criatividade da passagem para o além-vida) quanto no simbolismo evocado (as referências ao ego, id e superego possibilitadas pelos pavilhões de personalidades, deserto das almas desconectadas da vida e pelo abismo das viagens para a Terra). Assim, a narrativa experimenta um amálgama de variações visuais e leituras psicanalíticas dentro de uma história existencialista.
O existencialismo ganha força quando Joe e 22 tentam encontrar uma maneira de levá-lo de volta para o corpo dele. Ao longo da viagem por reinos cósmicos e fantásticos, as jornadas dos dois personagens se debruçam sobre as missões das vidas de cada pessoa sem jamais subestimar a inteligência do público. 22 hesita em encontrar seu propósito e partir para a Terra porque teme fracassar e ser humilhada, o que a deixa em uma postura pessimista até finalmente se entregar e viver sem receios. Já Joe se sente confiante em sua crença de que o jazz seria o sentido de sua existência e precisaria fazer o que fosse necessário para viver da música, até passar por incidentes que o fazem questionar se não estaria deixando passar outras experiências marcantes. Logo, não se trata de um tema simplista desenvolvido com uma abordagem limitadora, já que a progressão do roteiro expõe sutilezas sobre o que é realmente viver.
De certa forma, o terceiro ato propõe experimentações com o estilo da Pixar. Em parte, os núcleos situados na Terra com os protagonistas mantém elementos já usados previamente, como a jornada de aventura em busca da “recompensa” desejada, a combinação de aspectos realistas com marcas típicas da fantasia e a criação de conflitos sem a presença de vilões. Porém, em outro nível, a animação se distingue de expectativas consagradas, como o fato de a resolução dramática ser minimalista ao envolver sequências grandiosas e de os alívios cômicos serem praticamente inexistentes, embora o tom descontraído exista e seja estabelecido pelas situações surpreendentes nas trajetórias de Joe e 22.
A aventura do terceiro ato também fecha um ciclo de experimentações que perpassa a narrativa em muitos sentidos. O filme experimenta diferentes possibilidades gráficas e sensoriais para figuras realistas ou fantasiosas e universos compreendidos na ordem da subjetividade. Além disso, a própria Pixar reinventa suas características expressivas para criar uma obra voltada essencialmente para os adultos. Isso porque a última experimentação de “Soul” é desconstruir visões convencionais acerca dos propósitos da vida e dar vazão às múltiplas potencialidades da existência. Entre elas, está a exploração de outros elementos artísticos para continuar sendo dolorosamente emocionante.
Um resultado de todos os filmes que já viu.