“DUAS POR UMA” – Troca de corpos
Já foi o tempo em que muitas comédias investiam na proposta da troca de corpos fantasiosa e sem maiores explicações. Foi assim, por exemplo, com o casal de “Se eu fosse você” e com mãe e filha de “Sexta-feira muito louca” para que os personagens sentissem de forma extrema como seria viver como alguém diferente. Essa perspectiva pode integrar DUAS POR UMA, levando a mudança de identidade para outras possibilidades temáticas e estilísticas.
A situação da estrela de cinema Candy Black desencadeia os rumos da narrativa e das reviravoltas: após construir uma carreira renomada como comediante de filmes populares, ela começa a sucumbir às drogas e ao temperamento instável. A partir daí, entra em um ostracismo que a isola da sociedade e a obriga a ir para uma clínica de reabilitação. Porém, contrata sua dublê para ir em seu lugar, sem saber que sua sósia gostaria tanto de fingir ser a atriz.
Começando pela protagonista, todos os personagens “trocam de corpos” entre si ou em si mesmos. Candy Black é a persona famosa de Cathy Tyler; sua fama não significa satisfação pessoal, pois seu trabalho se resume a cair e falar seu jargão nas situações mais constrangedoras em produções de humor escatológico ou físico; a paixão verdadeira que possui é a carpintaria, algo desconhecido pelo grande público que nem imagina que ela era carpinteira e que retornou ao ofício após interromper a carreira artística (até conversa em uma rede social de carpinteiros com um interesse amoroso); outra dualidade é fazer os espectadores gargalharem enquanto ela se perde em seus vícios, no vocabulário ofensivo e nas atitudes autodestrutivas. A sequência em que se descontrola no set de filmagem é bastante simbólica das transformações que vive apesar de ser uma pessoa só.
Paralelamente, Paula sempre trabalhou em função de Candy. Graças à semelhança física, ela atuou por muito tempo como stand-in (chamado no Brasil de dublê) nas cenas mais arriscadas ou desagradáveis no lugar da estrela. Contudo, seu maior objetivo é se tornar uma atriz, de maneira que seu arco narrativo inicialmente é convencer Candy a regressar ao trabalho e proporcionar novas oportunidades à substituta. À medida que a narrativa transcorre, a solidária decisão de se passar pela comediante na clínica de reabilitação evolui para momentos mais extremos nos quais a personagem exemplifica mais uma “troca de corpos” – ela mergulha tão fundo na vida pessoal e profissional da outra mulher que cria outra vida para si, sendo uma demonstração potente de sua busca desenfreada pela fama.
O grande fluxo de identidades entre as mulheres (quem são, como gostariam de ser e o que aparentam para a sociedade) se reflete na performance de Drew Barrymore para as duas personagens. Para cada uma delas, a atriz cria nuances que as humanizam tanto quando parecem insuportáveis quanto quando demonstram fragilidades: Candy começa na intensidade de alguém que não suporta mais as exigências do trabalho e explode a qualquer instante, passa para a melancolia de quem não vê um horizonte possível após o declínio da carreira, e finalmente encontra o equilíbrio nos desejos pessoais mais íntimos; já Paula inicia na tranquilidade de quem busca de forma saudável suas ambições, mantém sua personalidade simpática mesmo nas primeiras mudanças da vida e, por fim, libera uma pessoa totalmente desconhecida de seu interior que cobra um alto custo para existir.
Apesar de a abordagem de “troca de corpos” já ser bem trabalhada nas duas personagens, a diretora Jamie Babbit leva essa perspectiva ao filme como um todo. Trata-se de uma comédia, mas não nos mesmos moldes das obras em que Candy e Paula trabalharam – embora o clássico recurso de gerar humor através da quebra de expectativa pela montagem seja utilizado. Assim, a cineasta dispensa as piadas e a forma de comédia mais óbvias, preferindo um impacto cômico a partir de detalhes, do andamento das cenas e da incorporação de questões dramáticas existenciais. Por esse viés, o roteiro de Sam Bain mostra como até o empresário Louis e o “namorado” virtual de Candy alternam entre diferentes identidades, entre o que expõem publicamente e o que realmente são; a escalada crescente de ações de Paula para se tornar atriz custe o que custar altera quem ela é; e as discussões sobre identidade alcançam reflexões sobre a efemeridade do mundo midiático e a fluidez da própria natureza humana.
Seria ainda mais expressivo para o roteiro se ele fosse encenado com uma riqueza estética maior. Como a narrativa se desenrola dentro do universo das celebridades e das redes virtuais, seria possível integrar o dinamismo desses ambientes na própria linguagem audiovisual através de escolhas que pudessem remeter a tais elementos ou se relacionassem com as trajetórias das personagens. Não seria inserir algo completamente novo, já que na abertura e no terceiro ato há passagens com esse efeito – os momentos mais interessantes da decupagem são o desfile de vídeos de trechos dos filmes anteriores de Candy como visualização de um site, além das selfies tiradas por jovens em ocasiões inoportunas.
Embora a percepção de uma “troca de corpos” de “Duas por uma” não seja similar à de “Se eu fosse você” e “Sexta-feira muito louca”, suas potencialidades são maiores a partir dessa simbologia. É com ela que o filme constrói uma comédia crítica sobre o mundo dos famosos, ao apontar que as cobranças por certa imagem sejam intensas, que a fama pode vir de comportamentos e eventos desconfortáveis ou humilhantes, que as redes sociais inviabilizem a privacidade e que o status social almejado desencadeie atitudes condenáveis. E dentro das jornadas de Candy e Paula, a simbologia proposta faz com que suas vidas e identidades se troquem, se complementem e se oponham.
Um resultado de todos os filmes que já viu.