“O TEXTO” – Muito diferentes, mas muito iguais [1 FCR]
O que O TEXTO propõe é uma visão de mundo deveras pessimista. Embora conste a ideia de vingança na sinopse oficial, não é este o seu tema mais relevante. Passeando por criminalidade e corrupção, o filme fala sobre meritocracia. Uma pergunta simples (talvez até demais): entre um rapaz de origem humilde e estudado, mas recém-saído da prisão, e outro encaminhado profissionalmente graças ao seu influente pai, quem tem mais chance de obter sucesso pessoal? A resposta do filme não vai pelo caminho da felicidade, mas da infelicidade.
Ilya Goryunov é preso injustamente, ficando no cárcere por sete longos anos por um crime que não cometeu. Quando sai, retomar a sua vida já não é mais possível. O que é possível, porém, é reencontrar Pyotr Khazin, policial responsável pela sua prisão, para se vingar. O que ele consegue acaba sendo diferente de uma vingança: em posse do celular de Pyotr, talvez Ilya tenha uma chance de uma nova vida.
Dmitry Glukhovsky é autor do best-seller e do roteiro do longa. Trata-se de um texto complexo e muito bem articulado. O que parece despropositado (como a cena em que Ilya se encontra com um “cliente” de Pyotr no bar) acaba tendo um encaixe sob medida (é a partir da cena que Ilya passa a tomar cuidado com a geolocalização). O próprio desfecho do filme revela uma saída engenhosa ao evitar a incoerência. Embora ocorra uma quebra grande de ritmo – a primeira meia hora, repleta de plot points relevantes, seria suficiente per si para engendrar um longa inteiro -, o que não ocorre é o desinteresse do espectador. Pelo contrário, o incidente incitante é provocativo o suficiente para fazer com que a plateia se questione como Ilya vai usar o celular de Pyotr.
Também é a partir do incidente incitante que surge o segundo principal assunto de “O texto”: a vida de uma pessoa está em seu celular. Através de conversas por aplicativos de mensagens, áudios, vídeos, fotografias etc., Ilya acaba sabendo tudo sobre Pyotr. É verdade que ele tem bastante sorte de encontrar alguém que registra tudo da própria vida no aparelho e que não apaga seu histórico, porém não é menos verdade que este perfil não é nada raro. A depender do espectador, pode ser desesperador perceber como é fácil enganar as pessoas através de um simples eletrônico. Fato é que Ilya engana – e muito – as pessoas do círculo de Pyotr. Como efeito colateral, contudo, aquele que foi concebido como vilão acaba sendo humanizado em demasia. Tanto a direção de Klim Shipenko (ao ilustrar o longo áudio ouvido pelo protagonista com uma cena introspectiva em que o antagonista se comunica com a namorada) quanto o próprio roteiro de Glukhovsky (no conteúdo da mensagem da mãe de Pyotr, revelando que a vida deste não era como Ilya imaginava) humanizam quem não deveria (ainda que acerte ao fugir do maniqueísmo).
Shipenko elabora uma mise en scène bastante sólida. O uso de subjetividade mental, mesmo intenso, é funcional; o emprego de câmera na mão consegue transmitir a adrenalina da cena; recursos técnicos são utilizados de maneira simbólica (como o travelling do primeiro ato, em que Ilya é colocado em uma longa caminhada no cinzento frio russo). Algumas cenas chegam a um nível de excelência – é o caso, dentre outras, do plano longo em um beco escuro, no qual o som e o esforço de Ilya (perceptível pelo seu gemido e pela demora) transparecem o peso não da tampa que ele está levantando, mas da decisão que está tomando. Há metáforas tolas (o desenho feito no começo, as escadas rolantes etc.), mas prevalece a comunicação sensorial na direção – como a música alta da balada em que o protagonista vai sozinho (quebrando a singeleza sonora para indicar a ruptura buscada por Ilya), que é o melhor momento da ótima atuação de Alexander Petrov, ou as imagens de santos no quarto da mãe (viradas para baixo).
“O texto” comunica muito mesmo que não o faça expressamente. Começa a se tornar doentia a maneira como Ilya se encara como Pyotr, já que alcança um nível íntimo (na cena em que ele vê o vídeo deste com a namorada). Por outro lado, ele se afeiçoa por as pessoas que estão ao redor de Pyotr, com inveja branda ao falar para este: “sua mãe é legal, Petya” (chamando-o inclusive pelo apelido, como se o rancor já tivesse se esvaído por completo). Falas como “um brinde à dinastia” vão além do que a cena transmite expressamente. É naquele momento, mais do que nunca, que Ilya percebe que, por não ter as facilidades que Pyotr tem (nomeadamente o prestigiado pai) e pela condição pessoal (sem nada e sem ninguém), não vai conseguir ter o que quer (e o que acha que merece). Sendo quem é, nunca será feliz. Contudo, com acesso ao celular de “Petya”, percebe que seu algoz também não era feliz como aparentava (ele tinha muito, talvez tudo, exceto o que realmente queria). Os dois são muito diferentes, mas também muito iguais.
Em tempo: o filme tem uma cena pós-créditos.
* Filme assistido durante a cobertura da 1ª edição do Festival de cinema russo.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.