“ANTENA DA RAÇA” – Povos, culturas, histórias e Glauber [9º ODC]
Quem nunca ouviu a frase “o Brasil não é para principiantes”? A nação é um emaranhado de personagens, acontecimentos, características e conjunturas que desafiam explicações e ações definitivas. Lidar com as particularidades, permanências e rupturas do país é um trabalho que permeia o documentário ANTENA DA RAÇA, que parte da experiência televisiva de Glauber Rocha para ir além do artista e de suas realizações. É através do encontro e do choque de imagens que o filme alcança também povos, culturas e histórias formadoras do Brasil.
A proposta é recuperar os materiais do programa “Abertura“, apresentado por Glauber Rocha para a TV Tupi entre 1979 e 1980, período de redemocratização política. Voltando a esses registros e intercalando-os com os filmes do célebre cineasta, Paloma Rocha e Luís Abramo refletem sobre mazelas e utopias circulantes na sociedade desde a década de 1960. Não se limitando a enfocar cenas passadas, a dupla também traz imagens recentes de 2018, que revelam o conturbado e o contraditório no tempo presente.
O grande fio condutor dos dois diretores para fazer o documentário é o trabalho de montagem, assinado por Alexandre Gwaz. Com ele, articulam-se trechos restaurados do programa televisivo e de obras de Glauber Rocha para demonstrar a sensibilidade ímpar e a força intelectual deste representante do Cinema Novo: a ousadia estética de projetos como “Terra em transe” e “Deus e o diabo na terra do Sol“, os discursos sobre temas variados (de Psicanálise até ensino de Literatura) e suas performances provocadoras (a partir, por exemplo, do uso de máscaras). Além disso, a dimensão do personagem é realçada com entrevistas com indivíduos que conheceram e interagiram com Glauber, como Caetano Velloso e José Celso Martinez – participações cirúrgicas para debater a força da arte onde quer que ela esteja.
Da mesma maneira que a narrativa revisita as peculiaridades do artista, ela igualmente o faz em relação ao povo brasileiro e sua cultura. No programa “Abertura” isso fica evidente nas várias filmagens externas em que Glauber conversava com figuras comuns, inclusive sobre questões leves do cotidiano ou temas sociais mais densos, ou na participação de outras pessoas simples no estúdio. Algo semelhante também é feito cenas adiante quando Paloma Rocha e Luís Abramo visitam áreas de periferia hoje em dia para conversar com outros indivíduos comuns. Entrelaçando-se a tudo isso ainda há registros de costumes de origem indígena e africana que, assim como as propostas de Glauber, não se adéquam a visões limitadoras e elitistas da identidade nacional.
Não satisfeitos em percorrer documentos sobre Glauber Rocha e parte da riqueza cultural da nação pelo viés do popular, os documentaristas buscam uma trajetória ampla dos brasileiros. Nesse sentido, a importância da montagem ultrapassa a função de apenas organizar as sequências e se aproxima do que o cinema soviético definiu como montagem intelectual, principalmente Sergei Eisenstein. Referenciar uma perspectiva que entendia a montagem como um recurso que pode unir elementos diferentes pelo conflito para gerar novos sentidos – a nível do tempo, das emoções e das interpretações – pode ajudar na experiência do documentário. Isso porque as narrações em voice over, o design sonoro e o encadeamento das cenas produzem significados distintos se aparecessem isoladamente.
Em primeiro lugar, tais significados enriquecem a jornada de representação dos desafios impostos à população. Os problemas se multiplicam para os setores populares por mais de um contexto histórico, englobando a seca do sertão nordestino, a violência em regiões periféricas e as desigualdades socioeconômicas entre as classes sociais. Ao invés de simplesmente citar as mazelas, a narrativa articula e complementa um segmento do programa, blocos de filmes de Glauber e registros jornalísticos contemporâneos – por exemplo, quando questionamentos acerca das condições de vida do interior brasileiro são levantados pela atração da TV Tupi e depois respondidos por uma cena de “Deus e o diabo na terra do Sol“. Assim, é possível combinar a década de 1960 (no início da ditadura), a transição dos anos 1970 e 1980 (no fim da ditadura) e o ano de 2018 no Brasil.
O entrelaçamento de tempos distintos também levanta reflexões sobre instabilidades políticas específicas no país. Novamente através da junção de arquivos de época, momentos especiais dos filmes de Glauber e de imagens atuais das ruas brasileiras, uma narrativa histórica se desprende: expectativas de grandes mudanças sociais (Reformas de Base no governo João Goulart e ascensão de grupos minorizados nos anos 2000) foram interrompidos por reações autoritárias e conservadoras (uma ditadura civil-militar e modelos fascistas amparados por setores reacionários). No entanto, a escolha de imagens antigas e contemporâneas também evita olhares pessimistas ou utópicos a respeito da reorganização do povo para suas lutas, afinal dependem delas para sobreviver.
Sem parecer uma colcha de retalhos carente de fluidez rítmica ou temática, “Antena da raça” traduz na estética a percepção de que o Brasil está mergulhado em paradoxos: são continuidades, otimismo e lutas sociais em meio às rupturas, frustrações e derrotas. Ao partir do universo específico de Glauber Rocha, a narrativa tem o trampolim para alcançar questões amplas do país, até porque esse personagem esteve sempre sintonizado com discussões macro. Além de saber por onde começar, a produção também como finalizar ao reforçar o caráter criativo da arte. O impacto artístico expressivo pode vir tanto do exercício intelectual de dialogar com a montagem soviética, quanto da experiência sensorial de adentrar na rica jornada de um povo com sua história e cultura.
* Filme assistido durante a cobertura da 9ª edição do Olhar de Cinema de Curitiba (9th Curitiba Int’l Film Festival).
Um resultado de todos os filmes que já viu.