“MATE-O E SAIA DESTA CIDADE” – Poesia de versos livres e não muito simpáticos [44 MICSP]
Matar e fugir são palavras cujo valor é, ao menos em tese, sempre negativo – mais ainda quando juntas. Um título como MATE-O E SAIA DESTA CIDADE transparece melancolia, desespero, quiçá covardia. Ou, talvez, necessidade. Ou mesmo tudo isso junto.
Com oitenta e oito minutos de duração, o filme se passa na mente de uma pessoa, onde tudo é permitido e as leis da física não têm relevância alguma. A partir de memórias, somadas a doses bem generosas de imaginação, cria-se uma terra onde, se a vida não é perfeita, não há morte.
Trata-se de uma obra bastante autoral de Mariusz Wilczynski, o que se conclui por três razões. A primeira e mais óbvia é que há uma personagem com o seu nome. Além disso, o longa é um mindblowing em formato visual, algo plenamente cognoscível apenas por quem planejou tudo aquilo. Ainda, a estética é bastante particular e até mesmo ousada.
Praticamente não há cores no território imaginário (ou inconsciente?) de “Mate-o e saia desta cidade”. Quando não há cores no campo, ele se torna inteiramente azulado e/ou acinzentado. Nunca há riqueza de cores, mas destaques gráficos pontuais (o sangue do peixe, o vermelho do laço do cabelo etc.). O desenho é quase cartunesco, com exageros nas faces (e por vezes também nos corpos) das pessoas, com traços deveras expressivos. Olhos esbugalhados, cabelos espetados, figuras animalescas: personalidade não falta.
Ainda no visual, os cenários abertos trazem uma interessante composição que simula tridimensionalidade, principalmente na movimentação dos trens. Em outras cenas, aparecem apenas as personagens, em fundo vazio (isto é, não há cenário algum). De certa forma, faz parte do projeto, que não demanda imagens rebuscadas. É igualmente cativante como o filme coloca tudo em uma questão de perspectiva: o que parece ser um navio no mar pode ser apenas um barquinho em uma banheira; longos fios de cabelo podem ser cabos elétricos na rua; aranhas no sapato podem ser pessoas minúsculas. Aliás, a homenagem a “Viagens de Gulliver” é notória.
Outro homenageado é David Lynch, cujas obras são no mais das vezes quebra-cabeças difíceis de se decifrar. Ocorre que “Mate-o e saia desta cidade” transborda a dificuldade e finca sua base na impossibilidade. Não há lógica, não há linearidade, não há narrativa. Existe uma espinha dorsal (além da mesma técnica de animação, é claro) de fundo, conflitando, porém, com a montagem, cuja pontuação sugere uma antologia. O filme tem escatologia e gore (arrancar órgãos, costurar peles…), pode ser um desafio para ser assistido, a depender da plateia.
“Mate-o e saia desta cidade” não é um filme fácil. Na verdade, quase que parece um mosaico de ideias soltas e sem um nexo evidente. A mudança de razão de aspecto não tem propósito aparente, simplesmente acontece. A animação abusa do psicodélico (peixes no teto, animais humanoides, cabeças falantes, pessoas com bicos etc.). Por outro lado, o som é bastante fiel às imagens, seja pelos ruídos diegéticos, seja pela trilha musical – uma das cenas, inclusive, parece um clipe musical completo. A guitarra presente na maior parte da trilha embala o surrealismo proposto com vigor simpático, algo que o filme não é.
Não que seja um filme antipático. O ponto de partida não é ruim, o projeto tem seus atrativos. Seus temas, igualmente, podem ser cativantes – assuntos como velhice, morte, cuidado, solidão. Como um verdadeiro tornado, esse conjunto se exterioriza de uma maneira bem poética e de versos livres, o que reduz brutalmente o interesse na obra. Ficar compenetrado implica sentir um pouco de sono; não prestar atenção, evidentemente, implica não aproveitar o filme em sua completude. O problema é que talvez seja esse o objetivo de Wilczynski, já que ele fez uma obra que apenas ele é capaz de interpretar adequadamente.
* Filme assistido durante a cobertura da 44ª edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.