“SERTÂNIA” – Diálogos com ‘Deus e o diabo na terra do Sol’ [9º ODC]
“Deus e o diabo na Terra do Sol” é um dos filmes mais renomados da história do cinema brasileiro. Como representante do Cinema Novo, esse título ajudou a repensar propostas artísticas no país e também retratou criticamente mazelas sociais no sertão no início da República. Décadas depois, é lançado SERTÂNIA, um drama com toques de faroeste, que dialoga com o clássico de Glauber Rocha sem jamais soar como uma referência vazia ou um plágio empobrecido.
Gerlado Sarno conta a história de Antão, um jovem nascido em Sertânia que, após uma temporada em São Paulo, retorna para sua terra natal. Esse retorno tem ligação com a morte da mãe e com uma jornada para compreender o assassinato do pai em Canudos, até se ver envolvido por um novo destino: entrar no bando do cangaceiro Jesuíno. Então, a temática do cotidiano no interior do Nordeste se desenvolve nas mãos de um autor já familiarizado com a proposta, desde a produção de seu documentário “Viramundo“.
Tanto no filme do Cinema Novo quanto no projeto atual, é essencial para a trama criar recursos que situem a opressão do ambiente sobre os habitantes. Alguns podem ser semelhantes, como os closes dos rostos cansados de peles rachadas dos moradores e a iluminação estourada de raios solares intensos em meio à fotografia em preto e branco – ainda que o filme mais recente também invista no contraste expressivo entre as cores do céu noturno, da lua e da fogueira na abertura. Por outro lado, existem aqueles recursos que são diferentes para concretizar a ambientação naquele meio: no trabalho dos anos 1960, são os sons diegéticos representativos da aridez do local; já no trabalho contemporâneo, são movimentos de mergulho da câmera sobre o solo e a vegetação.
Em função de um cenário de miséria, seca e exploração, é de se esperar que os personagens não tenham uma trajetória fácil. Se Manuel é um protagonista desorientado por conta dos desafios de sobreviver em meio a tantas adversidades – sendo frequentemente atirado de um lado a outro entre o trabalho para um coronel, o messianismo e o cangaço – Antão sofre com os delírios após levar um tiro. As decupagens de cada filme também se diferenciam dependendo dos estilos dos realizadores: Glauber Rocha expressa essa confusão emocional através de jump cuts e composições não convencionais do quadro; já Geraldo Sarno integra os personagens aos cenários, oscila a fotografia estourada, muda abruptamente o foco das lentes e ainda cria transições com raccords de movimento inesperados para ilustrar um estado de pré-morte.
A partir dessas escolhas formais, as duas obras levam os espectadores a sentirem oprimidos pelo meio e perdidos pela avalanche de acontecimentos naquela conjuntura histórica. Porém, é no desenrolar das narrativas que as maiores diferenças se ressaltam, já que Geraldo Sarno trabalha o roteiro como um labirinto fragmentado fora da ordem linear ou de relações evidentes de causa e consequência. Desse modo, cria-se um quebra cabeça para revelar os percursos histórico do Brasil no início da República (os conflitos no sertão brasileiro resultantes do coronelismo e da exclusão social, enquanto os centros urbanos se transformam com a industrialização) e pessoais do protagonista (a atuação no cangaço enquanto relembra a infância com a mãe e lida com memórias traumáticas em relação à morte do pai). Assim, é delirante acompanhar cenas fora de uma cronologia tradicional, que se sucedem em um vaivém de lembranças desencontradas.
O trajeto, então, se constrói e se reconstrói reencenando eventos e reposicionando situações sob novas configurações. A própria abordagem visual se reinventa na forma como pode propor experiências de imersão ao público, sem abusar de efeitos plásticos gratuitos. É o que acontece, por exemplo, nos planos subjetivos utilizados no confronto com os militares e no deslocamento de Antão pelo solo após o tiro; e no plano sequência empregado no momento em que o protagonista se aproxima e entra na casa de um coronel. O que poderia se tornar uma estilização forçada em mãos menos preparadas, se efetiva como traços gameficados de uma estrutura narrativa calcada no caos planejado de sensações e vivências.
Com a soma desses aspectos, o drama de Antão encontra seu lugar único digno de um universo social próprio. Essa percepção transparece quando as crenças e costumes locais moldam tudo ao seu redor, especialmente através da declamação de cordéis e da inserção do Mundo das Sombras como uma dimensão dos mortos. Além disso, é um universo à parte construído pela ação humana, tanto no que se refere aos sujeitos históricos daquele período quanto aos artistas produtores daquela visão estética – este ponto, por sinal, se desenvolve pela metalinguagem explícita nas cenas em que aparecem a equipe de filmagem com seus equipamentos e orientações específicas para um dos atores.
Nem mesmo a metalinguagem ocasional parece despropositada para a unidade cinematográfica. É através dela que a produção conecta de modos variados passado e presente, primeiramente na trajetória específica do personagem principal, posteriormente na extrapolação dos alcances da história contada. Afinal, os conflitos que presenciamos interliga os sertanejos de ontem aos camponeses de hoje, uma articulação que convida a pensar o que ocorre recorrentemente ao povo brasileiro em diferentes momentos históricos. Nesse sentido, “Sertânia” evoca uma discussão já proposta por “Deus e o diabo na terra do Sol”, mas com o autorismo daqueles que sabem encontrar seu próprio caminho.
* Filme assistido durante a cobertura da 9ª edição do Olhar de Cinema de Curitiba (9th Curitiba Int’l Film Festival).
Um resultado de todos os filmes que já viu.