“O DIABO DE CADA DIA” – Brutalidade levada a sério
Brutalidade, fé, desespero, vingança, descrença. O DIABO DE CADA DIA tem um pouco de cada um desses elementos (talvez com uma dose extra de vingança), uma mistura que parece explosiva, o que, todavia, não se concretiza. Seu ótimo elenco merecia um desenvolvimento melhor para as personagens. A brutalidade é levada tão a sério que o filme em si se torna bruto.
Willard é um jovem retornando para casa após ter atuado na Segunda Guerra. No caminho, se apaixona e decide construir sua família longe de casa. Seu filho, Arvin, aprende desde cedo as lições que o pai ensina. Em sua trajetória, Arvin conhece um policial corrupto, uma jovem vulnerável, um casal sinistro e um pastor pouco confiável, marcando presença quando suas vidas se entrelaçam.
Na sinopse, já é possível perceber o número extenso de personagens, circunstância previsivelmente problemática. O roteiro de Antonio Campos e Paulo Campos, baseado no livro de Donald Ray Pollock, não consegue dar profundidade a todas as personagens, de modo que muitas delas ficam unidimensionais. Em geral, suas motivações se resumem a duas formas: em alguns casos, uma fé inabalável que retira qualquer fiapo de racionalidade; em outros, um ímpeto de vingança que justifica atos de violência. As personagens cuja construção é razoável são as que se encaixam nesse quadro, outras, todavia, têm como justificativa para seus atos a pura e simples maldade, sem nenhuma camada humana.
Isso também se torna um problema para o diretor: Antonio Campos aparenta dificuldade para dosar o ritmo do longa, que é desnecessária e demasiadamente arrastado no primeiro ato. Para um filme de mais de duas horas, decepciona a maneira pela qual as personagens são tratadas. Willard (Bill Skarsgård), que surge como personagem principal, parece um rapaz sensibilizado pelos horrores que viu na Guerra e suscetível a um amor à primeira vista em razão de um ato altruísta. Enquanto se delineia o arco dramático de Willard, surgem duas das principais temáticas da obra, a brutalidade e a fé – a primeira, associada com a vingança; a segunda, ao desespero.
Mas não é Willard o centro da história. Arvin (Tom Holland, na versão adulta) é quem adquire centralidade ao conectar todos da trama. Não obstante, quando sua narrativa vai ganhando forma, o roteiro estranhamente abandona a linearidade cronológica para explicar fatos relativos a Roy (Harry Melling) e Helen (Mia Wasikowska), pais de Lenora (Eliza Scanlen, na versão adulta). A ideia é explicar que Arvin e Lenora são reflexos de seus pais, porém a abordagem arrastada torna a narrativa muitas vezes desinteressante.
Skarsgård, Holland e Scanlen são ótimos (Melling e Wasikowska, nem tanto), mas é Robert Pattinson quem interpreta a personagem mais intrigante, de um lado, e a que mais decepciona, de outro. A fé, que já era multifacetada (o desespero de Willard, a irracionalidade de Roy e a ingenuidade de Helen e Lenora), recebe novos tons pelo pastor propositalmente caricato e suspeito vivido por Pattinson. Caricato, pelo excesso de sotaque (as demais personagens também falam com sotaque, contudo o dele é mais exagerado, o que se justifica porque ele é de outra cidade) e pelo histrionismo; suspeito, pela conduta de entrada (causando a antipatia de Arvin).
O filme aborda uma tendência de repetição dos atos dos ascendentes e os (possíveis) efeitos deletérios da fé individual (ainda que de um ponto de vista deveras enviesado). Entretanto, há personagens cuja função é meramente instrumental, como no caso de Lee (Sebastian Stan), Sandy (Riley Keough) e Carl (Jason Clarke), cuja presença pouco se justifica. O visual bucólico, contrastando com tamanha hostilidade social, pode ocultar tais falhas, da mesma forma com que acontece com o impecável design de produção, que se adapta às sutis diferenças entre os anos 1940, 50 e 60. Entretanto, é visível que Antonio Campos não consegue dar profundidade à película. A trilha musical acerta na ambientação (o jazz de Kay Starr, o country de Bill Phillips e Dolly Parton etc.), mas fica aquém nas músicas instrumentais, que sugerem um suspense inexistente na obra.
As cenas noturnas também servem de bom exemplo: espera-se algo macabro, quando, na realidade, Antonio Campos entrega uma cena previsível e/ou sem emoção. Quando as personagens vão para uma floresta, o que acontece não consegue ser chocante porque é desdobramento natural dos acontecimentos. O filme não é ruim porque é possível perceber um bom material de fundo, mas é mal trabalhado e chega ao espectador parecendo bruto, mal trabalhado.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.