“O PASSADO” – Melodrama de efeitos duradouros
Relações familiares se tornaram um tema recorrente na filmografia recente do cineasta Asghar Farhadi, adaptando-as a gêneros e estilos diferentes dependendo da abordagem dramatúrgica. Foi assim, por exemplo, em “A separação“, como uma drama social interessado pelos costumes religiosos no Irã; e, em seguida, em “Todos já sabem” [crítica que pode ser lida clicando aqui], como um suspense direcionado para os segredos enterrados de uma geração. Em O PASSADO, a família é entendida como um núcleo favorável para o melodrama que nasce das consequências das atitudes do passado para o presente e para o futuro.
Inicialmente, essa produção se assemelha bastante à anterior (“A separação“) no que diz respeito a começar com um divórcio. Ahmad abandonou a esposa Marie e as filhas dela, Lucie e Léa, em Paris, para retornar ao Irã. Após quatro anos, ele volta para finalizar o divórcio e, durante sua presença, descobre que a intenção de Marie é se casar com Samir, um homem que já tem o filho Fouad de outro casamento ainda reconhecido pela lei.
As semelhanças e esgotam na premissa, pois o desenvolvimento do roteiro dispensa o estudo social e se concentra na dimensão psicológica dos personagens. Essa opção estilística e narrativa se materializa desde o princípio com a apresentação das antigas e novas interações construídas a partir do conflito central: há um ex-casal em processo de separação; jovens que são filhas biológicas apenas da mãe, mas que têm boas relações com o primeiro padrasto; a filha mais velha não se entende com o segundo padrasto; o novo casal em formação enfrenta as dificuldades de união por conta dos relacionamentos anteriores do homem; e um menino demonstra não estar satisfeito com o novo casamento do pai prestes a acontecer. Em resumo, são muitos vínculos (nem sempre tão tradicionais) que desafiam a forma como aqueles indivíduos lidam com as mudanças em suas vidas – exemplificados pelo fato de Ahmad ter sido hospedado na casa da ex-esposa.
Ficar na residência de Marie enquanto os papéis do divórcio são concluídos e outro matrimônio se aproxima desperta problemas, não apenas por responsabilidade do recém-chegado. Tais situações problemáticas impactam diretamente os arcos dramáticos de cada personagem, levando-os a confrontar os comportamentos de outras pessoas. Ahmad nota que pode ter sido chamado para resolver conflitos alheios; Marie enfrenta os dilemas muitas vezes inconscientes de conviver com o antigo marido e com o futuro esposo (deixando em aberto a real natureza de seus sentimentos); Samir se divide entre uma nova família nascendo e aquela já existente e duramente abalada; Lucie carrega dentro de si uma angústia incontornável causada por ações impensadas; e Fouad reage violentamente às incertezas de uma nova vida mudada inesperadamente.
Não tarda muito para que essas aflições na jornada dos personagens encontrem respaldo no título do filme. Todos os conflitos, de alguma maneira, remetem aos efeitos de alguma atitude do passado sobre o presente dos demais indivíduos afetados. Valendo-se de estratégias narrativas e escolhas de mise en scène, Fahardi define como é seu melodrama: revelações e plot twists movem a trama surpreendentemente e retiram os personagens da zona de conforto de compreender exatamente o que acontece e o que está em jogo; discussões acaloradas e confrontos físicos são respostas melodramáticas a muitos instantes em que uma revelação é anunciada e novos conflitos se abrem para novas feridas. Nesse último aspecto, é interessante perceber como Bérénice Bejo representa com intensidade o melodrama necessário através de um coerente overacting.
Embora o diretor tenha potencializado um tom menos comum em projetos anteriores, é possível notar marcas recorrentes de uma identidade artística. Há discussões intensas que marcam os impactos das reviravoltas, porém em muitos casos é o minimalismo que mais intensifica a necessidade de encarar suas próprias adversidades – por exemplo, nas cenas em que Lucie não segura as lágrimas, Ahmad questiona os propósitos da ex-esposa e Fouad desabafa em uma estação de metrô. Além disso, há também os clássicos momentos em que problemas surgem pela falta de comunicação, seja porque a troca de e-mails entre Ahmad e Marie pareça confusa, seja porque os espectadores por vezes não ouvem o que os personagens dizem por trás de uma janela de vidro. Em ambas as situações, os conflitos familiares atingem as emoções e o psicológico de todos que estão em tela.
O maior equívoco no desenvolvimento da narrativa está na passagem do segundo para o terceiro ato, quando o melodrama até então consolidado cede lugar a outro estilo. Mesmo não tendo tanto tempo, o realizador imprime uma abordagem detetivesca típica das histórias de investigação para lidar com o mistério em torno de uma tragédia. As revelações deixam de se suceder com efeitos dramáticos e assumem uma sensação sutil de suspense, que não harmonizam a unidade estética. Apesar disso, “O passado” se reencontra com suas virtudes na conclusão (ainda que se concentre somente em uma subtrama) ao projetar um futuro que pode haver em um plano-detalhe de duas mãos trançadas e evocativas das famílias afetadas por algo que nunca passará.
Um resultado de todos os filmes que já viu.