“REDE DE ÓDIO” – Estudo de personagem e época
De tempos em tempos, alguns filmes são lançados com a capacidade avassaladora de retratar determinado período histórico. REDE DE ÓDIO chega à Netflix com a precisão cirúrgica e assustadora de representar nossa atualidade marcada por fake news, milícias digitais, discursos hostis e pelo crescimento da intolerância violenta. Esse retrato é conduzido pela ambígua figura seu protagonista, que também oferece a possibilidade de examinar novos e perigosos arquétipos de nosso mundo tecnológico.
A produção original do streaming combina drama e suspense para contar a trajetória de Tomasz. Após ser expulso da faculdade de Direito, suas relações afetivas e profissionais são afetadas pela forma como reage às frustrações da vida e pelo tipo de trabalho feito em uma empresa de marketing. Esses dois eventos o levam a incitar o ódio nas redes sociais e a atacar as imagens de uma influenciadora virtual e de um político em ascensão. Tamanha crueldade desencadeia consequências brutais fora da Internet para o jovem e para quem o cerca.
Curiosamente, a representação de nosso tempo não começa pelo que a sinopse indica ser o foco. A narrativa parte da relação doentia entre Tomasz e a família Krasucka, sustentada pela dificuldade de o jovem lidar com suas emoções e pelos riscos de tentar manter algo que já não existe mais: ultrapassa quaisquer limites para continuar próximo deles (esconde um grampo para ouvi-los clandestinamente); omite os fatos de ter sido expulso da universidade e de não mais precisar de ajuda financeira para os estudos; e insiste em ter um relacionamento com Gabi, embora ela não corresponda (a persegue nas redes sociais). A cena em que o protagonista faz uma refeição na casa dessa família é simbólica da dinâmica constrangedora dos personagens e da perturbação moral e emocional do rapaz.
Nesse início, as primeiras camadas de Tomasz permitem reflexões sobre os indivíduos moldados pela efemeridade artificial das novas tecnologias. Ele se mostra um sujeito incapaz de aceitar negativas na vida pessoal – como um romance não correspondido – e repreensões por algo errado nos estudos ou no trabalho – como o plágio na faculdade -, traços que culminam em uma personalidade construída com base em desejos não realizados (obsessiva, mentirosa, ressentida e manipuladora). Porém, o personagem esconde essas facetas a todo custo, até dos espectadores que duvidam da sinceridade de seus sentimentos – exemplos dessa dúvida não faltam quando o diretor Jan Komasa faz longos closes no ator Maciej Musialowski, enquanto este sustenta diferentes expressões emocionais, ora contidas, ora exacerbadas.
Em paralelo ao desenvolvimento do protagonista corre o retrato de nosso presente. A partir do momento em que o rapaz começa a trabalhar na empresa de marketing, o filme sofre com algumas oscilações até encontrar a sintonia para uma trama densa: o ritmo envolvente (mesmo lento) da abertura se torna instável – possivelmente porque o interesse em torno do plot acerca da desinformação virtual ainda não havia sido conquistado -; a construção dramática dos acontecimentos leva mais tempo para chegar a uma sucessão de clímax compatível coma diegese; e o estilo de suspense para o desenrolar da narrativa leva alguns minutos até gerar tensões e expectativas. De certo modo, a jornada de Tomasz (próxima ao drama) não se encontra tão rapidamente com a representação das hostilidades no mundo virtual (próximo ao suspense), o que compromete a dimensão passional encontrada nos discursos de ódio e nas fake news.
O impacto da obra volta a crescer quando as ações do protagonista entram em um espiral de perversão irrefreável. De um stalker que invadia a privacidade alheia, ele se torna o criador de uma campanha difamatória contra uma youtuber e a mente por trás de um projeto de desqualificação do político progressista Pawel Rudnicki, com o intuito de favorecer o adversário nas eleições. Aparentemente, podem soar absurdos cada reviravolta e novo aspecto do roteiro, porém eles dialogam com o contexto atual da Europa e demais continentes: manifestações de supremacistas brancos, demonstrações de xenofobia, intolerância religiosa, radicalização ideológica e homofobia. Tais características são mobilizadas por métodos como criação de escândalos artificiais, anonimato da Internet, propagação de notícias inverídicas e manipulação de contas digitais falsas.
A partir do instante que o cineasta equilibra análise de personagem e de época, a narrativa harmoniza gêneros e escolhas estilísticas para que a proposta seja coesa. É através da combinação entre trilha sonora operística e montagem paralela com múltiplas temporalidades que Jan Komasa cria sequências impactantes – uma, em especial, quando Tomasz se descontrola, articula o uso nocivo das tecnologias, controle emocional de indivíduos vulneráveis e exposição de uma conjuntura reacionária. Enquanto as consequências atingem a realidade, outra faceta do personagem principal se revela de maneira chocante: sua crueldade e falta de empatia parecem vir da busca por adrenalina ou do desejo de poder, tudo capaz de levá-lo a deturpar frases e sentimentos de terceiros em proveito próprio.
Se o tema é desafiador, a narrativa também segue sensações análogas para potencializar seu efeito. À medida que “Rede de ódio” transcorre, uma ambiguidade provocativa se intensifica, chamando atenção para os contrastes entre imagens públicas e secretas no mundo contemporâneo. Dessa dualidade vem um filme que analisa um personagem pelo viés do drama, ao trazer um homem ressentido, mentiroso e manipulador fruto de um tempo imediatista em que todos os desejos precisam ser saciados; e que analisa pelo viés do suspense, ao descrever o período em que vivemos, com apreensão, o que o futuro nos reserva.
Um resultado de todos os filmes que já viu.