“VELUDO AZUL” – Doce canto de um sonho terrível
Na aparente tranquilidade do subúrbio norte-americano, esconde-se um universo de putrefação. Da suposta crença de que a experiência cinematográfica é exclusivamente fácil e prazerosa, submergem percepções desafiadoras e desagradáveis (mas nem por isso fascinantes a seu modo). Eventualmente, esses mundos díspares se chocam e revelam como a sociedade e o cinema são mais complexos do que as aparências sugerem. E é o choque entre contrastes que interessa o diretor David Lynch em seu inusitado suspense onírico VELUDO AZUL.
A trama segue Jeffrey Beaumont ao voltar para a pacata cidade de Lumberton quando o tio é internado no hospital. Enquanto caminha pelo campo, descobre uma orelha decepada jogada no solo que o faz se envolver em uma investigação incomum. Tendo ao seu lado a vizinha Sandy, ele penetra cada vez mais fundo no mistério em torno da sádica relação entre a cantora de cabaré Dorothy Vallens e o traficante de drogas Frank Booth.
Em poucos minutos, David Lynch desconstrói em imagens e sons a insinuação de que Lumberton é um local paradisíaco e perfeito. Os primeiros planos se detêm sobre uma superfície povoada por jardins bem cuidados, um sol radiante e pelo aceno sorridente de um bombeiro na rua. Porém, à medida que o cineasta mergulha sua câmera no interior daquela terra, os aspectos mais incômodos aparecem, como insetos se alimentando no solo e a orelha em decomposição repleta de formigas. Essa sensação de deterioração é anunciada através dos dois elementos citados e antecipa o que está prestes a invadir a vida do protagonista – a dualidade entre o idílico e o putrefato se manifesta também nas variações da trilha sonora de Angelo Badalamenti, que começa com acordes deslumbrados com o subúrbio e se torna um conjunto de notas misteriosas de uma melodia mais opressiva.
Descobrir aquela parte do corpo humano é o acontecimento capaz de levar o jovem para um mundo desconhecido e nada agradável (indicado simbolicamente pelo zoom in dentro da orelha). Isso inicialmente ocorre com a investigação clandestina de Jeffrey com a ajuda de Sandy – de início, ela se comporta como uma auxiliar que aponta as primeiras pistas e informações para o personagem principal e para o público -, a partir de uma dinâmica reveladora dos universos antagônicos onde vivem. Diálogos entre eles e também com o policial pai da moça cumprem esse papel: são falas como “parece um sonho, mas ir fundo é estranho e perigoso”, “a curiosidade do detetive é ótima e horrível” e “descobri um mundo escondido”. Ao mesmo tempo, o trabalho de Kyle MacLachlan transborda a curiosidade do rapaz em resolver o mistério da orelha e, em seguida, a desorientação de querer ajudar apesar de não entender exatamente todos os fatos e suas explicações.
Tamanha desorientação de Jeffrey tem forte ligação com os personagens que conhece a partir da investigação. Em especial, são dois que despertam nele sensações de estranhamento, pois ambos apresentam comportamentos irreais. Dorothy transita entre o charme sensual das performances musicais e o desespero autodepreciativo provocado pelas chantagens do traficante, possibilitado pelo impacto da atuação de Isabella Rossellini; já Frank alterna entre a violência criminosa e a insanidade de um sujeito com problemas sexuais e atitudes obsessivas, traços que permitem a Dennis Hopper se divertir com o uso constante de uma máscara de oxigênio e a repetição de inúmeros “fucks“. Em seus desempenhos sobressaem a dualidade entre superfície e profundeza em níveis perigosos e incongruentes.
A percepção da irrealidade desse outro mundo é ressaltada nos momentos em que David Lynch imprime seu clássico estilo onírico às imagens e à encenação. Mesmo que essa estética seja mais marcada em “Cidade dos sonhos” e “Império dos sonhos“, ela se apresenta no filme de diferentes formas: os diálogos já mencionados; os símbolos que servem como porta de entrada para o “universo” oculto (a orelha e as cortinas no primeiro plano e no apartamento de Dorothy); a textura das sombras e da escuridão, que sugere algo escondido e promove a aparição de algum personagem (por exemplo, a primeira participação em cena de Sandy); as cenas enigmáticas transcorridas após o primeiro contato entre Jeffrey e Frank; os efeitos das canções “Blue velvet” e “In dreams“; e o uso das cores azul e vermelho na composição das sequências que envolvem Dorothy e Frank (iluminação, figurino da cantora e tecido azul carregado pelo criminoso). Assim, a nova realidade é diferenciada como uma dimensão à parte e em decomposição.
Quando as duas porções da trama ficam mais evidentes, as caracterizações de Jeffrey e Sandy ganham novas camadas. Ele converte a curiosidade e a solidariedade iniciais em uma atitude voyeurística – semelhante ao espectador cinematográfico, que observa “às escondidas” o que está diante de si e sente emoções agradáveis ou não -, ou em uma postura apreciadora de mistérios – próxima da identidade artística do cineasta, interessado em explorar realidades oníricas, imaginativas ou fora do plano terreno pragmaticamente racional. Ela, por sua vez, representa a necessidade de o protagonista escolher em qual dos mundos prefere ficar: a segurança de um relacionamento sadio prestes a desabrochar ou os riscos da convivência com personagens imprevisíveis.
O rumo escolhido por Jeffrey passa necessariamente pela colisão, já que as dimensões entre o discernível e o oculto não conseguem coexistir harmonicamente. É curioso perceber como David Lynch abre espaço para nos fazer pensar que a experiência cinematográfica e o universo da classe média integram o belo e o sujo. Uma dualidade que se faz presente na filmografia do realizador ao atribuir ao insólito o regime de arte. Um contraste que se expressa no subúrbio norte-americano de “Veludo azul” no desfecho que retoma a abertura e cria o símbolo de um pintarroxo devorando um inseto.
Um resultado de todos os filmes que já viu.