“A TEORIA DE TUDO” – Honra a memória de uma figura sem igual
Tratar de uma figura popular como Stephen Hawking deveria levar a uma biopic. Porém, A TEORIA DE TUDO não é exatamente uma cinebiografia, ao menos não em termos tradicionais, preocupando-se mais com a relação entre Stephen e Jane Hawking (em especial nos primeiros anos do relacionamento) do que com os fatos que o tornaram famoso.
Mesmo jovem, Stephen é um promissor astrofísico, a despeito da sua despreocupação com as formalidades do estudo (horários, tarefas etc.). Na sua vida social ativa, ele se encanta por Jane Wilde, estudante de Letras em Cambridge – e o sentimento é recíproco. Aos vinte e um anos, quando ele é diagnosticado com uma doença motora degenerativa, o que parece motivo de afastamento para os dois acaba os unindo ainda mais.
Depois de alguns documentários (o mais famoso, “Man on wire”, a história de Philippe Petit, posteriormente gravado em formato não documental por Robert Zemeckis em “A travessia”), James Marsh se torna um diretor célebre com o longa sobre Stephen e Jane Hawking. Sua mão é pesada, com filtros nada discretos, pouca profundidade de campo e episódios de epifania (como na cena em que a moça derruba uma caneta). Trata-se de um fator que pode não agradar a parcela do público, mas não necessariamente é algo ruim.
Marsh aproveita o campo com elementos imageticamente simbólicos em relação a um tema que foi central nas pesquisas do astrofísico, o tempo. Em uma cena (a que Jane e Stephen giram no gramado), isso fica mais claro, porém a presença de imagens circulares é uma constante na obra: a xícara que Stephen fica olhando no trem (com o conteúdo girando), as escadas da casa do protagonista, a janela de seu quarto, seu olho fixado na lareira (que inclusive tem dupla função simbólica, referindo-se também às estrelas). Na montagem também há circularidade, como na transição entre as duas primeiras cenas, em que há um corte por associação pictórica (a cadeira vista por cima em movimento circular e depois a roda da bicicleta).
Visualmente, o design de produção ressalta a cor verde, simbolizando a esperança: paredes e vestido na primeira conversa longa entre Jane e Stephen, o carro dele ao buscá-la, o estofado da cadeira do hospital, a toalha que Elaine usa para barbear Stephen etc.. Trata-se de um assunto que, em verdade, é fundamental para o longa: a despeito do diagnóstico que Stephen recebe, com a ajuda de Jane, ele não é vencido pela doença.
A fotografia de Benoit Delhomme é coerente com a direção (não é discreta), empregando luzes fortes (talvez até em demasia) em algumas cenas (como a que Stephen assiste à televisão e a seguinte, em que joga croquê). Por outro lado, há vezes em que a atenção que a iluminação toma para si tem função narrativa (como na cena do baile). O viés autoral da película ocorre também nas elipses, em que a maravilhosa trilha musical de Jóhann Jóhannsson embala gravações caseiras simuladas, através de uma fotografia bem granulada (aparentando filmagens reais). As músicas, além de marcantes (seja pelas deliciosas valsas criadas por Jóhannsson, seja pela potência das peças de Wagner), têm elogiável harmonia com o ritmo da trama (por exemplo, na cena em que Stephen cai no chão). Mesmo o silêncio é bem aproveitado (como quando Jane se declara).
Destaca-se, evidentemente, o trabalho brilhante de Eddie Redmayne, cuja corporalidade é impressionante (a movimentação nas escadas causa enorme aflição perante o público). No começo, Stephen parece apenas um rapaz desajeitado, que derruba uma caneca por distração e tem uma caligrafia trêmula. Redmayne é primoroso ao explorar a progressão da doença, assemelhando-se ao verdadeiro professor Hawking mesmo quando mais velho, com a cabeça virada e praticamente nenhum controle sobre os músculos faciais – o que, todavia, não impede microexpressões dramáticas (a cena em que Jane aparece com o quadro das letras é tocante graças ao trabalho do ator). Não é apenas uma interpretação com impecável desempenho corporal, pois Redmayne aproveita tudo o que pode (seu olhar de fascínio na aula sobre singularidade espaço-tempo é empolgante) – inclusive a química com a ótima Felicity Jones.
Baseado no livro de Jane Hawking, o roteiro de Anthony McCarten pode deixar a desejar pela timidez quanto ao trabalho intelectual do protagonista. Entretanto, existem minúcias provocativas no texto. Além de preservar o (real) bom humor de Stephen (cuja sagacidade era ímpar) e valorizar a personalidade forte de Jane (sem falso pudor, mas também sem demonizá-la, ressaltando a amizade dos dois), a produção esboça as variadas facetas do amor ao construir as pontes entre Stephen, Jane, Jonathan e Elaine. As triangulações inovam no plot e vão além dos opostos iniciais (Stephen, um cientista ateu; Jane, uma estudiosa da arte e bem religiosa): Jonathan não entende nada de física (e quem o ensina não é Stephen), Elaine não gosta das “piadas” que Jane faz sobre a saúde do marido (venerar o chão por onde as rodas passam, melhor quatro palavras que só uma…). O que o filme demonstra, de todo modo, é que, apesar das diferenças, não existe uma rivalidade corrosiva, mas uma união em torno de uma figura incomparável.
De certa forma, “A teoria de tudo” combina com Stephen Hawking, que não queria ser reduzido a um homem que superou uma doença extremamente severa, tampouco a um astrofísico renomado. Stephen foi muito mais que isso, o que a obra honra com eficácia.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.