“A NOITE DOS MORTOS-VIVOS” (1968) – Renascimento do pesadelo
Até a década de 1960, os filmes de zumbis eram associados a maldições de vodu, poções mágicas e ao exotismo do Haiti ou da África. “Zumbi branco” e “Revolta dos zumbis” são exemplos de projetos que carregavam na discriminação racial e religiosa para tornar o diferente a fonte do medo. Quando o ano de 1968 chegou, o subgênero nasceu mais uma vez, agora com a marca de George Romero. Foi através de A NOITE DOS MORTOS-VIVOS que esse pesadelo foi reconstruído com novas possibilidades e abriu espaço para futuros trabalhos se inspirarem.
Essa referência tem início com a fuga de Barbra após ter sido atacada por um homem em um cemitério e encontrado refúgio em uma casa suburbana. Com o passar do tempo, outras pessoas buscam proteção no local, entre elas Ben e a família formada por Harry, Helen e a menina Karen, além do jovem casal Tom e Judy. Todos tentam se proteger de ameaças nunca antes enfrentadas: a luta pela sobrevivência enquanto uma horda de seres sedentos de carne e sangue cercam a residência e forçam a entrada.
Desde o princípio, George Romero apresenta sua própria visão dos zumbis não mais como produto de religiões não cristãs. As criaturas gradativamente assumem a imagem consagrada pela cultura pop, começando apenas como indivíduos comuns mergulhados em uma espécie de transe que os levam a atacar outros seres humanos; adiante, alcançam o arquétipo monstruoso de figuras que andam desengonçadas com os braços estendidos e têm o corpo em progressivo estado de decomposição. A definição dessas características é feita com habilidade, ao inserir as informações do rádio e da TV sobre a algumas regras de sua existência (como o fato de se alimentarem de carne humana e serem eliminados com golpes no crânio). Assim, é possível estabelecer pouco a pouco um universo de criaturas referenciadas e/ou ressignificadas por produções como “Madrugada do mortos“, de Zack Snyder (refilmagem de “Despertar dos mortos” de Romero), e “Extermínio“, de Danny Boyle.
No que se refere à ambientação da história de terror, não é necessário situar os acontecimentos em uma terra “exótica” que abriga hábitos “selvagens”, como já se atribuiu ao Haiti e ao continente africano. Pode-se encontrar o perigo dos mortos-vivos em uma área suburbana dos EUA com personagens comuns vivendo os dilemas próprios da luta pela sobrevivência. Nesse sentido, também é curioso como a narrativa mostra, através da TV encontrada na moradia, que os monstros desintegram a sociedade norte-americana como um todo, mas o foco é aquele microcosmo de sete pessoas confinadas em um único ambiente. Logo, o confinamento se torna um tema a ser explorado, assim como a difícil convivência daqueles que não concordam sobre a melhor maneira de se proteger e de escapar com segurança.
Outro nível dessa ambientação surge através da fotografia em preto e branco e do alto contraste entre luzes e sombras. Essa técnica confere ao medo uma potência maior, já que a ameaça transita entre o espaço iluminado e a região oculta pela escuridão, ao mesmo tempo em que cria uma sensação de claustrofobia opressora. Se o remake do filme dirigido por Tom Savini em 1990 investiu no uso das cores e em um ritmo mais acelerado para impactar o público, o original definiu uma atmosfera de pesadelo que aparenta ser permanente e improvável de fugir – impressão não apenas deixada pelo crescimento da horda ao redor da casa, mas também pelos conflitos estabelecidos entre Ben e Harry na liderança do grupo.
Quanto aos subtextos e às alegorias, o diretor também demonstra que o roteiro pode dispensar o etnocentrismo e a exotificação do outro. A experiência estética de assistir a essa obra significa estar diante de múltiplas possibilidades de leitura, nenhuma delas definitiva e muitas questionadoras da realidade norte-americana dos anos 1960: o anticomunismo metaforizado pelo temor dos zumbis, a apreensão de uma guerra nuclear materializada pelas consequências da radiação, menções à corrida espacial/armamentista/tecnológica da Guerra Fria e citações ao risco da transmissão de epidemias. No restante de sua filmografia, o alargamento de possibilidades continuou, como atestam as críticas ao consumismo em “Despertar dos mortos“, os ataques ao militarismo em “Dias dos mortos” e as reflexões sobre coexistência pacífica em “A ilha dos mortos“.
No aspecto representatividade social, também houve avanços. Deixando para trás os estereótipos vistos anteriormente, há um protagonista negro que não é o selvagem de costumes chocantes, a figura comicamente ingênua ao extremo ou o símbolo de sacrifício para o personagem branco. Muito disso vem da atuação de Duane Jones, capaz de encarnar um sujeito forte e de personalidade assertiva mesmo quando é perigosamente confrontado – na época de lançamento, a escolha de um protagonista afrodescendente revela uma ruptura benéfica do status quo vigente. Apesar de conter um forte vínculo com questões sociais (como o desfecho de Ben), ainda há representações questionáveis das mulheres em cena, retratadas como vulneráveis (Barbra) o seguidoras sem personalidade (Helen e Judy).
De 1968 a 2020, os zumbis presentes no cinema se consolidaram dentro de convenções e já se reinventaram segundo novas propostas. Nesse intervalo de tempo, as criaturas já estiveram em sátiras (“Todo mundo quase morto“), comédias românticas (“Meu namorado é um zumbi“), found footage (“[REC]“), ficções científicas (“Eu sou a lenda“), críticas sociais originais (“Os curados“) e em outros estilos. Tantas ramificações foram possíveis graças a uma origem similar que, diretamente ou não, influenciou obras futuras e se tornou referência para o subgênero. Tal posição foi alcançada por “A noite dos mortos-vivos” ao permitir que o pesadelo renasça sob base mais promissoras do que a intolerância travestida de ferramenta para o terror.
Um resultado de todos os filmes que já viu.