“DARK” [3ª TEMPORADA] – Mindblowing
* Clique aqui para ler a nossa crítica da segunda temporada da série.
Mesclando filosofia, religião e física, DARK se consagra, em sua TERCEIRA TEMPORADA, como uma das melhores séries originais Netflix. Vista isoladamente, a terceira temporada talvez decepcione, porém há que se considerar a criação como um todo, um conjunto magnífico fracionado em vinte e seis episódios.
No final da segunda temporada, o apocalipse se inicia, em 27 de junho de 2020. Nem todos os cidadãos de Winden sofrem, porém, com o evento. Alguns viajam para outro tempo: é o caso de Katharina (sozinha); Bartosz, Franziska e Magnus (com a versão adulta de Jonas); e Charlotte (sozinha, para 2053). Outros, permanecem no pretérito, no momento em que já estão – Ulrich e Hannah. Um grupo sobrevive por ficar em um bunker: Claudia, Regina, Peter, Elisabeth e Noah (jovem). Jonas (jovem) não tem tempo para sofrer com o assassinato cometido por Adam contra Martha: uma nova versão da amada o salva, levando-o para outro mundo.
Mantendo-se fiel a aspectos estilísticos presentes em todos os episódios, a montagem é um dos destaques. Cada capítulo reserva alguns minutos para absorver os principais acontecimentos, usando de montagem paralela (locais diferentes, épocas diferentes) com músicas fortes com o objetivo de deixar o espectador refletindo sobre o episódio. Quando há mudança de data, bastam os cortes secos e o som de cronômetro; quando há mudança de mundo (a realidade das duas primeiras temporadas seria a da “Winden 1”; a novidade da terceira, de onde vem a Doppelgänger de Martha (Lisa Vicari), seria a “Winden 2”), há um efeito simulando um buraco de minhoca entre os planos que se alternam. Os raccords ainda tem utilidade visual (como na saída de Hannah da sala de Ulrich seguida da entrada de Martha no quarto de Magnus, tudo na “Winden 2”) e são usados, por vezes, como recurso didático (como quando ao revelar quem é o Inominado – já que ele mesmo admite que não tem nome – que aparece em três versões etárias).
Sem prejuízo da ótima trilha musical – a ironia ao tocar “If I could turn back time” é ótima! -, o showrunner (e também criador, diretor e corroteirista) da série Baran bo Odar demonstra esmero especial pela coesão visual da sua obra. Para além da sombria “Winden 1”, agora a “Winden 2” precisa ter semelhanças e diferenças. Há personagens que parecem simples contraposições, como o Doppelgänger de Magnus, que, além do cabelo escuro e do corpo tatuado, distingue-se pela postura mais confiante (parece até mais alto), voz grave e palavreado chulo – ou seja, quase um oposto do angelical da “Winden 1”. Outras demonstram diferenças sutis, como no cabelo (Charlotte) ou na pele (Katharina, que parece mais jovial na “Winden 2”, talvez por ter uma vida menos desgastante). Também em elementos inanimados existem diferenças, como as cores da fita em frente à icônica caverna e a roupa de proteção usada na usina, ou mesmo nas casas de Hannah e Katharina. Não apenas do ponto de vista imagético, mas também do interpessoal há divergências, como a vida afetiva de Ulrich e de Martha.
A Winden (1) pós-apocalíptica deixa a atmosfera sombria em viés de mistério, da fotografia escurecida, para abraçar uma realidade militarizada, com tons mais cinzentos. O norte parece um estado de natureza, o que justifica a transformação de Elisabeth. A religião cristã não está apenas no apocalipse vindouro, mas também nos nomes dos episódios, além da ideia de paraíso que todas as personagens parecem procurar. No design de produção, além de medalha de São Cristóvão (repetida à exaustão), os quadros de Adão e Eva e, principalmente, de “A queda dos condenados” compõem simbologias inteligentes – por exemplo, no segundo caso, trata-se de uma pintura de Peter Paul Rubens, na qual o arcanjo Miguel lidera os exércitos de Deus contra as forças do diabo. Sem ignorar a triquetra e a importância da tridimensionalidade de tudo, “Dark” tem um plot bastante assentado na dualidade (característica assumida por uma personagem), contrapondo diversas vezes noções como luz e escuridão, vida e morte e bem e mal.
Filosoficamente, o roteiro se aventura por questões bastante espinhosas, em especial centradas no determinismo. Na sua corrente pura, existem duas premissas: (1) nada acontece sem uma causa e (2) nenhuma ação está livre da lei da causalidade. O livre-arbítrio, assim, seria uma ilusão – ideia defendida por Eva. “Dark” ingressa profundamente nesse vespeiro, propondo que existe liberdade para fazer, mas não para querer – ressaltando que este determina aquele. Apoiando-se na filosofia de Schopenhauer, Adam entende que viver é sofrer e só há salvação no nada. Mesmo personagens coadjuvantes meditam sobre essas ideias; uma delas chega a questionar a razão por que o destino seria bom para alguns e ruim para outros.
O trato das personagens, todavia, não é acertado sempre. Espera-se que, em algum momento, Jonas (Louis Hofmann) irá se tornar protagonista da sua própria trajetória, deixando de ser instrumento de uma trama maior. Sem citar nomes para evitar spoilers, basta dizer que há personagens instrumentais que pouco agregam, enquanto outras ganham maior participação e algumas efetivamente progridem em seu arco narrativo. Há grande expectativa para a terceira temporada dar todas as respostas aos inúmeros questionamentos gerados nas fases precedentes, porém isso não ocorre – não na integralidade. Nem todas as soluções agradam (a de Jonas, no sexto episódio, exige uma suspensão da descrença incompatível com a seriedade adotada até então) e subsistem lacunas de menor importância. Parece que bo Odar teve uma dificuldade de rumo, já que a segunda temporada, em contagem regressiva para o apocalipse, desperta um suspense considerável. Até o quinto episódio, “Dark” fica distante do final grandioso e apoteótico que se poderia esperar de uma construção tão meticulosa como a que vinha apresentando, contudo é nesse capítulo que a narrativa ganha força.
Ou seja, depois de quatro episódios mornos, o quinto, com cenas fortes e violentas, se torna facilmente o melhor. Se o sexto decepciona com uma explicação simples demais para um plot point bem ousado, o sétimo acelera desenfreadamente em um enérgico trânsito de datas, parecendo querer compensar a lentidão do início – é o melhor dos oito da temporada. Ignorando um déjà vu exageradamente sentimentalista (à “Interestelar”) no desfecho, não há dúvida que “Dark” é uma série corajosa por não adotar caminhos fáceis (ao menos em regra) e inovadora ao arquitetar uma trama intrincada e intelectualmente desafiadora – premissas a que a produção se mantém fiel até o fim. São muitos detalhes e muitas personagens, com teorias complexas e reflexões ásperas, um verdadeiro mindblowing. Que venham outras produções como esta alemã original Netflix.
Em tempo: como um todo, a série merece cinco estrelas; para a temporada, porém, quatro são suficientes.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.