“O ORFANATO” – Histórias em amadurecimento
De 1979 a 1989, o Afeganistão esteve sob ocupação soviética e se constituiu em um governo socialista. Ao longo de dez anos inseridos no contexto da Guerra Fria, o país assistiu também à ascensão dos rebeldes mujahidin, que tomaram o poder no fim dos anos 1980 e instituíram um Estado teocrático islâmico. De maneira pouco convencional, a produção afegã O ORFANATO constrói sua narrativa de amadurecimento tendo a História como pano de fundo.
Não se trata de uma abordagem tradicional sobre eventos históricos porque seu ponto de vista, mesmo se alternando entre alguns personagens, sempre acompanha jovens de quatorze, quinze ou dezesseis anos. Assim, seguimos Qodrat enquanto vive em um orfanato soviético após ter cometido pequenos delitos. No local, convive com outros jovens como Fayaz, Feraj e Hasib e vivencia momentos comuns da idade, como apaixonar-se e lidar com perdas. Ao longo da sua estadia, as disputas ideológicas do período parecem cada vez mais se fechar em torno do orfanato, fazendo com que as ameaças da guerra civil se aproximem.
As primeiras cenas são expressivas para apresentar o estilo da obra. A partir do momento em que Qodrat assiste a um filme indiano no cinema (demonstrando um fascínio pelas imagens), a diretora Shahrbanoo Sadat direciona a câmera para o cotidiano marcado por dificuldades socioeconômicas de Cabul: o prazer de um passatempo banal se converte em prisão quando o menino vende ingressos muito acima do preço e as tentativas de fuga o levam para o orfanato onde conhece outros adolescentes como ele, privados do afeto e de melhores oportunidades de vida. Até quando o foco narrativo é transferido para Fayaz e Feraj, o mesmo padrão está presente: são familiares muito unidos, apesar de o pai de um deles ter morrido tragicamente e o mais jovem ser tio do mais velho (uma situação familiar incomum produto dos problemas da sua realidade).
A partir da chegada no reformatório juvenil, a descrição do cotidiano prossegue tanto nas sequências criadas quanto na decupagem da cineasta. Naquele lugar, presenciamos a primeira e inocente paixão do protagonista, as aulas ministradas, os comentários dos garotos sobre as professoras, doenças e mortes, meninos mais velhos que se colocam na posição de comandantes e oprimem os demais, brincadeiras ingênuas no riacho e diálogos bem-humorados sobre o futuro – por ter se originado dos diários não publicados de Anwar Hashimi, um dos atores do elenco, o roteiro possui o formato de memórias e não se estrutura dentro de uma trama convencional de causa e consequência. Sadat filma essa história com planos e enquadramentos simples, como se a vida se descortinasse diante de nossos olhos e a câmera a captasse alternando as perspectivas dos personagens; por outro lado, porém, algumas dessas passagens parecem deslocadas da narrativa como um todo (a paixão por uma colega) ou do impacto emocional pretendido (o desfecho do supervisor).
Os obstáculos observados nesse cotidiano são revestidos pelo panorama histórico do Afeganistão, desde as mazelas sociais que atingem os jovens até referências amplas ao contexto mundial. Por acompanharmos o país sob influência da URSS, acontecimentos retratam a presença do socialismo, como a viagem para Moscou e a visita ao túmulo de Lênin; a existência de uma guerra civil próxima, como na cena em que os adolescentes se deparam com um tanque avariado e soldados acudindo um companheiro ferido; e as mudanças políticas decorrentes da tomada do poder pelos mujahidin, como os véus usados pelas mulheres no orfanato e o perigo da violência. Apesar de a contextualização histórica não deixar dúvidas do contexto em que a obra se situa, é possível imaginar se a História não foi utilizada majoritariamente apenas como pano de fundo e pouco foi apropriada como recurso dramático para os arcos narrativos – à exceção do terceiro ato, as referências históricas sugerem uma enumeração de curiosidades da época.
Em outro sentido, as sequências em torno do cinema também insinuam algo que a diretora retomaria durante a narrativa: a inserção de momentos de realismo fantástico produzidos pela imaginação dos personagens e não subordinados a uma racionalidade naturalista. No início, é a sensação de que Qodrat mergulha na tela à sua frente e observa de perto as cenas de luta do filme que vê (uma produção indiana que tem suas imagens fundidas às imagens do filme de Sadat e os créditos iniciais mesclados de um ao outro). Mais à frente, são as construções de sequências musicais sobre amor e amizade que entram no fluxo narrativo tradicional e emulam as características de Bollywood de mesclar gêneros e criar esquetes com estilos distintos do tom predominante. No desfecho, o mesmo recurso é novamente empregado para criar uma situação inesperada envolvendo os meninos e os rebeldes islâmicos, além de remeter ao que o protagonista assistia no cinema e despertava nele um prazer sensorial.
Essa conclusão não só demonstra uma coerência estilística da diretora como também responde a eventuais críticas que poderiam ser feitas à sua abordagem. É um final que se articula à trajetória de Qodrat, dialoga com as escolhas imaginativas feitas anteriormente (inspirando-se em Bollywood) e trabalha a contextualização histórica em consonância com o subgênero coming of age. Este aspecto pode enfrentar comentários mais contundentes sobre uma ingenuidade alienante diante de um período histórico grave e complexo: o realismo fantástico não é uma válvula de escape de um cenário adverso, mas um mecanismo de luta possível daqueles jovens contra esse mesmo cenário.
Um resultado de todos os filmes que já viu.