“O CONTO DAS TRÊS IRMÃS” – Uma sinonímia equivocada
O avô de Sevket sempre lhe contou uma história sobre três meninas ingratas. Talvez seja essa a forma como ele enxerga suas três filhas. A perspectiva de O CONTO DAS TRÊS IRMÃS, porém, é mais densa e multilateral.
Era uma vez três irmãs – Reyhan a mais velha, Nurhan a do meio e Havva a mais nova -, filhas de Sevket, um senhor respeitado no vilarejo onde moram, uma região pobre na Península de Anatólia. É com base nesse respeito que ele consegue entregá-las para homens ricos da cidade usarem-nas como empregadas domésticas e babás. Depois de elas serem devolvidas, ele tenta consertar a situação, ignorando os próprios desejos das filhas.
A palavra desejo, ainda que não seja dita, tem um significado relevante na trama. Quem melhor consolida a existência de vontade própria é Reyhan (Cemre Ebuzziya, que vai bem no papel), que logo no começo já demonstra o objetivo de se mudar assim que o filho pequeno tiver mais independência. Para ela, independência é fundamental, tanto quanto o domínio – à medida do possível – da própria situação. Ainda que não sinta afeto pelo marido, sente a própria libido pulsar, razão pela qual é ela quem decide quando eles têm relações sexuais. Ou melhor, quando e como: a posição denota seu intuito simbólico de superioridade, da mesma forma como ela faz ao calar o esposo e não demonstrar grandes emoções além do prazer.
O marido de Reyhan é a personagem mais interessante e que mais agita a trama (que, a bem da verdade, não é das mais dinâmicas). Dentro do cenário montanhoso do vilarejo, cuja luz natural (ora solar, ora do fogo) sugere a pobreza dos locais, é Veysel (Kayhan Açikgöz) a persona que mais destoa da sobriedade dos demais. É verdade que Nurhan (Ece Yüksel) tem uma personalidade agressiva, distinta daquela das irmãs, contudo Veysel não age motivado por um sentimento fervoroso como a raiva, mas por desejo – talvez não o mesmo desejo de Reyhan, mas ele também tem seus objetivos.
O grande obstáculo de Veysel acaba sendo ele mesmo, com seu jeito tragicomicamente atrapalhado. Sentindo-se fracassado, ele quer uma vida melhor para si e para a família, protagonizando uma sequência bastante emblemática em que também estão Sevket (Müfit Kayacan) e o senhor Necati (Kubilay Tunçer) – o primeiro é seu sogro, o segundo, um homem rico da região que devolveu ao sogro a filha do meio -, além de um homem que eles chamam de “Chefe” (parece alguém como um prefeito do local). Nessa sequência, Veysel encontra no raki (bebida alcoólica típica turca) um aliado para falar tudo o que sempre quis, de um pedido de emprego a ofensas ao sogro.
Insolente, Veysel insiste no pedido com Neicati até ser expulso da reunião – para a qual não foi convidado – a pontapés. Isso, todavia, é só o começo das suas perigosas trapalhadas. A racionalidade de Reyhan é praticamente o oposto da sua indomável fala. A sua verborragia também opõe-se ao jeito tímido de Havva, a caçula que é a grande esperança do pai. Seu penteado com “maria-chiquinha” sugere um ar infantil, mas Helin Kandemir interpreta o papel melhor que os adultos. Dedicada nos afazeres do lar a ponto de ser repreendida, não fica exatamente claro o porquê de ela ter sido devolvida, posto que o sonho que ela compartilha com Reyhan forneça algumas sugestões.
A fotografia do longa é prevalente em cores terrosas (nas roupas e nos cenários, em especial), o que condiz com a região campestre onde as personagens moram. Com um plot twist, Emin Alper (diretor e roteirista da película) aproveita o twist para mudar a fotografia pela neve. Assim, a atmosfera se torna bem menos calorosa. Alper usa boas ferramentas do ponto de vista imagético (a câmera subjetiva no carro, por exemplo), tem uma trilha musical cativante (considerando o universo diegético) e diálogos interessantes (como quando Reyhan e Nurhan falam sobre sexo). Entretanto, algumas dessas ferramentas são pouco significativas (as cambalhotas de Hatice), não existe um padrão no uso das músicas (algumas são cantadas e com estilo marcante; outras, instrumentais e, ainda que belas, mais genéricas) e os diálogos não raras vezes violam o princípio “show, don’t tell”.
Sevket acha que encontrar uma casa de família rica para as filhas implicaria um bom futuro, ignorando que elas têm vontade própria. O filme utiliza o escorpião em dois momentos para representar, metaforicamente, a passionalidade das “filhas ingratas”. O que Sevket não pensou é a equivocada sinonímia entre ingratidão e desejo, uma questão espinhosa para qualquer pai – na Turquia ou em qualquer outro lugar do mundo.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.