“CYRANO MON AMOUR” – Comédia de erros
Nascido em Paris em 1619, Hector Savinien de Cyrano de Bergerac foi um escritor e duelista que não ganhou fama em vida. Morto em 1655, foi apenas em 1897 que ele se tornou célebre, através da peça teatral “Cyrano de Bergerac”, escrita por Edmond Rostand. O plot de CYRANO MON AMOUR consiste nos bastidores precedentes à peça, que acabou eternizada na cultura francesa.
O protagonista Edmond é um jovem escritor que não consegue fazer sucesso com suas peças românticas em versos – forma ultrapassada à época. Desesperado, ele oferece a um famoso ator, Constant Coquelin, uma comédia heroica. Coquelin se empolga, apressando-o a desenvolver sua história (que ainda não havia sido escrita). É na pressa e na expectativa que Edmond constrói “Cyrano de Bergerac”.
Trata-se de uma verdadeira comédia de erros. Escrita e dirigida por Alexis Michalik, o diretor faz da sua produção uma ode ao retrospecto histórico do clássico, aproveitando circunstâncias reais – certamente romantizando-as – para extrair humor. Um beijo na pessoa errada, uma presença inusitada em um bordel, uma identidade indevidamente apropriada: tudo é pretexto para uma comédia genuinamente leve e divertida. Um feel good movie (ou, talvez mais adequado, cinéma de joie).
Edmond Rostand é bem interpretado por Thomas Solivérès como um jovem que percebe um precoce declínio da carreira – nem mesmo Sarah Bernhardt (Clémentine Célarié), respeitada atriz da época, foi capaz de salvar “A princesa longínqua” do fracasso. O corpo esguio do ator ajuda a enaltecer a fragilidade da personagem: o romancista se sentia no fundo do poço em 1895. Sua esposa Rose (Alice de Lencquesaing) já não sustentava a sua inspiração, não servia como musa. Sua vida estava gélida tal qual sugerido inicialmente pelo design de produção, com o papel de parede azul, verde e branco em sua casa, e a neve no exterior.
Contudo, há uma virada para o surgimento de cores rubras e ambientes de textura aveludada (evidentemente, o teatro, em especial): é Jeanne, vivida por Lucie Boujenah. Antes mesmo de surgir o protagonista da peça de Rostand, Jeanne o catapulta para a obra-prima. Não por sua beleza, mas pela paixão pela obra do escritor. É na cena do encontro duplo arranjado por Léo que as engrenagens narrativas começam a girar, mesclando realidade simulada e ficção pura em uma inteligente metalinguagem.
O Léo Volny de Tom Leeb é o verdadeiro Christian da peça: belo, porém de poucos dotes intelectuais. Mesmo sem saber, Jeanne é traduzida dramaturgicamente para o papel de Roxanne, uma inspiração para Edmond, mas também para Cyrano, que não é ninguém mesmo que o escritor. Criador e criatura se confundem: Edmond não tem o nariz enorme – ou melhor, a “protuberância” – de Cyrano (e que é confirmado em relatos históricos), todavia tal qual o seu herói ele precisa ter um norte platônico. O que move Edmond é a admiração que Jeanne nutre por ele (sem sequer conhecê-lo pessoalmente), é a visão romântica de um amor traduzido por hipérboles, metáforas e incontáveis outras figuras de linguagem. Jeanne não busca o amor carnal e físico oferecido por Léo, o que ela quer é um amor etéreo e metafísico como Rostand escrevia em suas obras. Por sua vez, Cyrano é a exteriorização desse modo belo de encarar o nobre sentimento.
Narrativamente, a trama adota uma estrutura de brainstorm: tudo é apropriado por Edmond para escrever a sua peça. Nas entrelinhas, existe uma crítica ao preconceito e uma homenagem à arte: no primeiro caso, o Monsieur Honoré de Jean-Michel Martial quebra um paradigma racista que já era ultrapassado no fim do século XIX; no segundo, é a mesma personagem que, em um encantador monólogo, enaltece a arte e o artista. Este pode se esvair com o tempo, aquela é imortal.
Como a arte imita a vida, o histrionismo do excelente Olivier Gourmet se torna verossímil na medida em que Coquelin tenta colocar o próprio filho – a despeito da escancarada inabilidade deste – em um papel de destaque na peça. Não havia apenas preconceito no fim do século XIX: havia também a proteção aos seus, um verdadeiro lobby para a escalação do elenco (não custa lembrar que o teatro era valorizado e enobrecido, ainda que Rostand tenha se assustado com as inovações dos irmãos Lumière, que lhes eram contemporâneas). Sendo uma comédia de desencontros, não surpreende a efetiva participação de Maria (Mathilde Seigner) na peça.
Gourmet imprime um tom farsesco em Coquelin, como se já estivesse entrando no papel de Cyrano (novamente a metalinguagem ganha vez, é um ator interpretando um ator). Esse ponto de vista é comungado pela trilha musical de Romain Trouillet: salvo no quinto ato na peça, em que o cenário se torna realista e os sons são diegéticos simulados (como se pássaros estivessem no palco), as músicas se aproximam do épico, como “French cancan” e “Le boléro”. As cordas ditam o ritmo trôpego da escrita de Edmond Rostand, constantemente improvisando seu texto. Pode não haver congruência completa com os fatos, mas a narrativa se torna charmosa mesmo quando pouco crível. É um humor inofensivo e agradável como uma boa comédia de erros que é “Cyrano mon amour”.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.