“A NOIVA CADÁVER” – Fábula desconstruída
Contos de fadas são histórias do tipo fantástico que apresentam seres imaginários e personagens humanos em aventuras mágicas na luta do bem contra o mal. O Expressionismo Alemão foi um estilo artístico que causou impacto emocional por trazer imagens e temas distorcidos por uma visão de mundo descrente e pessimista. Tais narrativas parecem inconciliáveis e antagônicas até Tim Burton e Mike Johnson adaptarem alguns elementos dessas abordagens e produzir A NOIVA CADÁVER. Assim, uma animação sombria e expressionista segue e desconstrói convenções dos contos de fadas.
Já na diegese, percebe-se como tradicionalismos não são seguidos à risca. As famílias de Victor e Victoria organizam o casamento deles, que se mostra atrapalhado pelo nervosismo do noivo. Tentando ensaiar os votos, o protagonista, por engano, pede a mão de Emily em casamento em uma floresta. O grande problema é que Emily está morta, fazendo com que Victor seja levado para o mundo dos mortos. Enquanto isso, um novo pretendente aparece para Victoria.
A princípio, a trama mantém convenções típicas do subgênero fantástico e de conflitos suscitados por um casamento: o matrimônio arranjado pelos pais sem que os noivos se conheçam; um vilão que se opõe a essa união, representado por Lorde Barkis; eventos fantasiosos fora de explicações racionais e existentes em um mundo mágico; e um desfecho aparentemente infeliz que se converte em feliz quando a empatia ganha espaço. Contudo, o roteiro de Tim Burton, Pamela Pettler, Caroline Thompson e John August brinca sutilmente com as expectativas e se desvia ocasionalmente das tradições: o casamento como possibilidade de ascensão social não se concretiza de nenhuma forma; Victor e Victoria não se desentendem como se poderia imaginar em um matrimônio forçado; e o conflito central independe do antagonista e se baseia, na verdade, em um mal-entendido entre os personagens.
Conforme a narrativa avança, percebem-se elementos pouco usuais que, indiretamente, remetem a outros tipos de história. A entrada de Emily divide a produção entre o núcleo dos vivos e dos mortos, abordando a questão da morte sem o peso dramático observado em trama infantis ou a sisudez do Expressionismo Alemão, pautado na representação de um pesadelo. A animação utiliza o humor para exibir tudo que se relacione à morte (larvas, caveiras, corvos, esqueletos que se soltam…) e paródias do terror para indicar as aparições dos mortos (Emily saindo do solo e aparecendo na janela de um quarto). Desse modo, o estilo conto de fadas é desconstruído por uma combinação de gêneros não tão esperados – uma comédia soturna sem excessos e um terror referencial em choques – e por contrastes na relação do mundo dos vivos e dos mortos, este mais vívido do que aquele.
Mesmo não apresentando muitas sequências musicais, aquelas que existem reforçam ainda mais as diferenças entre os universos inferior e superior e as subversões do subgênero. No mundo dos vivos, a performance é contida e melancólica, como se os personagens cantassem sem se entregar à canção e a encenação abusasse de uma sobriedade impessoal – além disso, traz versos muito expositivos dos interesses dos pais em planejarem o casamento, o que enfraquece a apresentação musical e reduz o poder das imagens em se sustentarem com sua própria inteligibilidade. Já no mundo dos mortos, a mise en scène desses momentos possui uma vivacidade evocada pela movimentação daqueles esqueletos, pelo canto dinâmico e pela estética de cores vibrantes – algo que não seria o mais comum dentro do estereótipo daquele ambiente.
Porém, o que mais associa o filme a aspectos do Expressionismo Alemão é sua composição visual. A formação artística de Tim Burton bebe muito da corrente cinematográfica que nos legou obras como “Metrópolis” e “Nosferatu” (cuja crítica pode ser lida clicando aqui) e influencia seus trabalhos (por exemplo, “Frankenweenie” e “Sombras da noite“). A dimensão sombria e gótica atinge a paleta de cores idealizada por Pete Kozachik, que estabelece padrões próprios em cada núcleo narrativo: a iluminação depressiva do mundo dos vivos, banhada por um contraste entre preto e branco com doses de cinza e marrom lavados; e a iluminação vigorosa do mundo dos mortos, composta por tons de roxo, verde e azul relativos ao lado místico daquele espaço. Se, no Expressionismo Alemão, a fotografia soturna criava uma ambientação de pesadelo que sintetizava o espírito alemão no período entreguerras, nessa animação, o jogo de cores quebra expectativas do que deveria ser um conto de fadas convencional.
De forma complementar, o design de cenários e personagens de Alex McDowell acompanha a unidade estilística do diretor. Em especial, o corredor preenchido por caixões e a entrada do laboratório do velho Gutknecht se assemelham aos ambientes geometricamente distorcidos do Expressionismo Alemão. Além disso, os personagens apresentam suas próprias distorções corporais (membros muitos finos e longos ou rostos e estômagos muito arredondados) e detalhes caricaturais (as vestes do padre e os adereços no cabelo da mãe de Victoria). Inclusive, cada um deles é concebido dentro do esquema de cores dos dois universos e da técnica de stop motion para criar uma sensação de estranhamento em comparação à maioria das fábulas.
“A noiva cadáver” não é inteiramente original, já que se baseia em uma lenda do folclore russo. Nada mais justo se inspirar em uma narrativa pré-existente para um cineasta que imprime seus próprios traços na colagem de diferentes elementos estéticos. Não é simplesmente uma fábula com magia, casamento arranjado e vilões egoístas. É tudo isso e também a desconstrução do subgênero com piadas sobre morte, brincadeiras com convenções do terror e referências ao gótico e ao Expressionismo Alemão. Um amálgama coerente e carismático.
Um resultado de todos os filmes que já viu.