“ANNABELLE” – Momentos isolados
Após o sucesso de “Invocação do mal“, não tardou para os produtores James Wan e Peter Safran se lançarem na criação de um universo compartilhado. Aproveitando-se da tendência inaugurada pela Marvel, foi lançado ANNABELLE em 2014 sobre a demoníaca boneca guardada no escritório do casal Warren. A origem dessa ameaça é contada por uma narrativa que, ocasionalmente, tem seus momentos: lembranças do antecessor mais inspirado e cenas pontuais com algum valor, sempre carentes de maior unidade estilística.
O espectador acompanha a expansão do universo diegético através do casal Mia e John, que está à espera do nascimento da filha Leah e compra para ela uma boneca. Em uma noite, sua casa é invadida por membros de uma seita, que quase os assassinam. Apesar de se salvarem, eles se encontram frente a frente a um perigo mais grave, quando a boneca Annabelle se torna um recipiente para uma entidade maligna.
Justamente nas primeiras sequências, a produção reserva algumas passagens eficientes, dedicadas à apresentação do reservatório do mal. Em poucos segundos, a câmera de John R. Leonetti fecha o quadro no rosto de Annabelle para mostrar a expressão sinistra com uma pesada maquiagem, hematomas e ferimentos (ao que parece) e um olhar intimidador preenchido com sangue na pupila; enquanto isso, jovens relatam os estranhos acontecimentos em torno da boneca. Em seguida, a invasão à casa dos protagonistas é filmada com a dose precisa de tensão evocada por sustos, ambientação sombria da noite, elementos no extracampo, grande profundidade de campo e a quebra da normalidade do cotidiano.
Contudo, a abertura dotada de virtudes logo se converte em uma trama convencional de espíritos e maldições do gênero. A boneca pouco se relaciona com os riscos provocados por demônios que cercam Mia e Leah em busca de almas, inclusive aparece em cenas nada impactantes sentada em uma cadeira em diferentes posições (nem a trilha sonora sugestiva de terror ou os enquadramentos incomuns retiram algum impacto sensorial contínuo). Em geral, os clichês são mais frequentes: ruídos estranhos e objetos defeituosos surgem inesperadamente (máquina de costura, TV e fogão, por exemplo, manipulados para gerar medo ou espanto); o marido cético que não acredita nos fenômenos sobrenaturais e nunca está em casa para vê-los; o policial que conduz uma investigação simplesmente para informar à mulher e ao público detalhes sobre a seita; e a personagem dividida entre acreditar no sobrenatural ou aceitar que são alucinações.
Mesmo abraçando convenções prontas sem grandes ressignificações, o cineasta se destaca em alguns instantes por oferecer pistas do que irá acontecer posteriormente. Isso é visto na divulgação de notícias sobre a família Mason na TV para logo depois apresentar uma seita que ataca o casal principal, bem como na sugestão de que Mia poderia se ferir na máquina de costura enquanto a TV se concretiza cenas à frente. Porém, são momentos isolados porque, na maior parte do tempo, técnicas para transmitir perigo ou deturpação da realidade mundana são usadas indiscriminadamente tanto em uma conversa banal entre vizinhos (filmada à distância como se algo estivesse à espreita para atacar, mas nada assim acontece) quanto no passeio de Mia com a bebê pouco antes de uma manifestação demoníaca (filmado como em outras poucas cenas tensas através de planos inclinados e lentes grande angulares).
Quanto se trata de sequências realmente assustadoras, a obra igualmente sofre com a irregularidade. Além da abertura, existem dois exemplos em que, de fato, ocorreu alguma construção visual mais criativa: a cena que envolve o vento balançando as cortinas da janela e a descida até o subsolo do prédio pelo elevador – são duas passagens adequadas para afetar o espectador dentro da proposta de terror, quebrando expectativas com surpresas bem inseridas e moldando uma atmosfera capaz de evocar o que a protagonista sentia. Nesse sentido, o impacto sensorial é bem-sucedido sem abrir mão dos jump scares, pois estes são preparados com a devida ambientação para reforçar o medo suscitado pela situação.
A mesma falta de unidade pode ser verificada nas referências à religião cristã ao longo da narrativa. Desde os conflitos gerados pela seita satanista, a presença constante da igreja frequentada por Mia e John e até as manifestações de demônios, o filme utiliza o lado místico para conformar uma luta entre o bem e o mal. Entretanto, o maniqueísmo, mesmo sendo simples, não é trabalhado para fazer avançar a história, apenas ilustra o temor pelo inexplicável como algo reconhecível pelo público. Nem o padre nem a dona da livraria desempenham função narrativa além da exposição didática das religiosidades e crenças (mesmo o desfecho entrega uma solução que não engaja emocionalmente por falta de preparação).
Com a culminância do último ato, as irregularidades na criação de uma unidade coesa se revelam ainda mais visíveis. Conceber cenas que funcionam isoladamente não é o bastante para a produção fornecer uma história independente de convenções simplistas, subtextos meramente ilustrativos, personagens sem grande identidade e momentos genéricos de terror. Assim, esse gênero navega pelo circuito comercial ficando sujeito aos problemas encontrados em “Annabelle“: depender de lampejos de qualidade própria e referências a projetos melhores.
Um resultado de todos os filmes que já viu.